domingo, 21 de dezembro de 2008

O FALSO ARGUMENTO NA QUESTÃO DAS COTAS

Por
Luiz Carlos Azenha
Do site Vi o Mundo

Eu passei a me interessar pela África graças à Conceição Oliveira, uma das editoras-itinerantes deste site. Desde então mergulhei nos assuntos africanos. Com grande prazer acabo de ler "A Manilha e o Libambo", de Alberto da Costa e Silva.

No Brasil, neste momento, trava-se um debate sobre as cotas para negros. Há os que querem que elas sejam impostas pelo governo federal. E os que as rejeitam completamente, argumentando que as cotas deveriam ser sociais, não raciais, e que não devemos "racializar" o debate, que essa "racialização" é um importação indevida de modismos dos Estados Unidos e que só vai aprofundar a cisão racial no Brasil.

Eu diria a vocês que essa "racialização" já existe. E que muitos dos que se opõem a qualquer tipo de ação afirmativa na verdade acabam defendendo a manutenção de um status quo injusto, em que a mulher negra está na escala mais baixa da pirâmide que tem no topo os homens brancos.

Pessoalmente acho que as cotas não devem ser impostas de cima para baixo, pelo governo federal, como se fossem a cura para todos os males. Acredito em ações afirmativas de baixo para cima, adotadas por instituições públicas e privadas, no feitio do que já fazem diversas universidades brasileiras.

Elas enfrentam um combate duro patrocinado pelos neocons brasileiros, que se reúnem em torno da revista Veja e da TV Globo -- de Ali Kamel a Reinaldo Azevedo, de Demétrio Magnoli a Diogo Mainardi. É um país curioso, o Brasil. Na matriz, os neocons são um fenômeno dos anos 80. Mas aqui, na filial, só ganharam algum status já no século 21. É mais uma demonstração do atraso de nossa elite.

Aliás, não é de hoje que os intelectuais prestam serviço a causas pouco nobres, fornecendo os argumentos para a manutenção de injustiças sociais como a escravidão. O próprio Alberto da Costa e Silva encerra o seu livro com um capítulo que deveria ser leitura obrigatória. Segue um trecho:

No fim do século 17, ao se falar de escravo, pensava-se em negro. Ficara para trás o tempo em que nas listas da escravaria do sol da Europa tinham destaque árabes, armênios, berberes, búlgaros, circassianos, eslavos, gregos e turcos, e em que os negros eram minoria nas populações escravas das Américas. Quase duzentos anos antes, já se tornara incomum encontrar-se nos espaços dominados pela Europa um escravo branco que tivesse vindo de terras cristãs ou, melhor, que fosse europeu.

[...]

Além de negros, não era invulgar, no Portugal quinhentista, encontrarem-se em cativeiro árabes, berberes e turcos. Havia também, ainda que em número bem menor, indianos, malaios, chineses e ameríndios. Estes últimos eram poucos, porque adoeciam com facilidade ou, deprimidos, se suicidavam. Quanto aos asiáticos, a Coroa lhes limitava a importação, para não ocuparem um espaço que seria melhor empregado, nas naus da Índia, com pimenta, canela, cravos, sedas, lacas e outras mercadorias mais valiosas.

[...]

Tal qual sucedera, a partir do século 10, no mundo islâmico, o negro foi-se tornando, ao avançar o Seiscentos, no sul da Europa e na maior parte das Américas, o escravo por excelência. De um "outro" entre os "outros", passou a ser considerado uma espécia humana distinta, inferior à branca e predestinada a serví-la. Repetiram-se entre os europeus -- e não como enredo de farsa, mas novamente como urdidura de tragédia -- todos os argumentos que os árabes haviam esgrimido para justificar a escravidão dos pretos. Ressuscitou-se, possivelmente a partir da versão muçulmana, o falso anátema de Noé contra os filhos de Cam -- falso porque lançado claramente contra apenas um deles, Canaã, e não contra Cuxe, de quem descenderiam os africanos. Noé os amaldiçoara: os seus descendentes seriam escravos e negros -- e escravos porque negros.

Foram reforçando-se, um a um, os estereótipos a partir dos quais se construiria toda uma ideologia racista: os pretos eram curtos de inteligência, indolentes, canibais, idólatras e supersticiosos por natureza, só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão.

[...]

Esse tecido ideológico vestia a necessidade que tinha a expansão européia de mão-de-obra abundante. Já no começo do Quinhentos, em muitas partes da América, os aborígenes diminuíam rapidamente de número, vítimados pelas guerras e razias, pelo excesso de trabalho e pelas doenças trazidas pelos conquistadores, e se mostravam difíceis de escravizar, ou porque podiam facilmente refugiar-se nas funduras dos sertões e ali resistir pelas armas, ou porque se abrigavam sob a proteção dos jesuítas e de outras ordens da Igreja. As regiões balcânicas e à volta do mar Negro, até então a maior fonte de escravaria para a Europa e o mundo islâmico, tinham sido fechadas aos europeus pelos otomanos, na metade do Quatrocentos.

[...]

Em contraste, as costas da África subsaariana apareciam como uma fonte quase inesgotável de escravos.

*****

Pelo que escreve o autor do livro, não houve falta de gente a fornecer os argumentos necessários para justificar a escravidão. Assim como não faltam, hoje, aqueles que acreditam que basta investir na educação para superar o verdadeiro abismo de renda que existe entre os homens brancos e as mulheres negras na sociedade brasileira.

Quando eles dizem que é um risco "racializar" o debate estão brandindo um argumento falso. Por mais que a gente disfarce a sociedade brasileira é "racializada", com os homens brancos no topo e as mulheres negras na base da pirâmide de renda, de acordo com números do IPEA. Estou entre os que acreditam que o estado brasileiro deve fazer algo a respeito.
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O FALA MARISCO destaca um comentário postado no site Vi o Mundo, sobre o artigo acima reproduzido.
Comentários:
Mário (20/12/2008 - 20:33)
Sou negro, universitário, filho de proletários e concordo plenamente que a nossa sociedade está sim "racializada". No entanto, tratando apenas das cotas raciais, pergunto: como fica o meu vizinho branco, pobre e aluno de escola pública, que não tem acesso à universidade, do mesmo modo que qualquer negro pobre? Ele será discriminado e condenado neste processo, somente por ter dado o "azar" de ter uma pele mais clara que a minha? Ou é possível dizer que o branco pobre tem um melhor acesso à educação que o negro e, por isso, não precisa de políticas públicas para ajudá-lo?

Precisamos ver que por mais que exista discriminação racial no Brasil, acho que falso é o discurso que forçosamente tenta assemelhar nossa realidade à dos EUA, para tentar fundamentar a adoção destas políticas. Lá, cotas raciais- mesmo que impostas "de cima para baixo"- fazem todo sentido, afinal, naquele país até pouco tempo atrás o negro não entrava na universidade pelo simples fato de ser negro. Aqui, por pior que seja a situação, vive-se um contexto totalmente distinto, onde o negro não chega ao ensino superior não por ser negro apenas, mas sim por fazer parte de uma parcela da sociedade que não teve acesso à educação, da mesma maneira que acontece com qualquer outro indivíduo desta parcela. Por isso que, não sendo apenas o negro a vítima da exclusão que se pretende combater, não acho justo o critério racial, até por que ele não é o fator determinante desta exclusão.

Um comentário:

Val Du disse...

Oiiii!
Que o ano de 2009 seja maravilhoso para você.
E que possamos fortalecer nossos laços de amizade.

Um grande beijo.