quarta-feira, 13 de maio de 2009

A TEORIA ECONÔMICA ORTODOXA DEVE AVANÇAR

Bastaria fechar o país aos fluxos especulativos para recuperar o poder da política monetária

César Locatelli


Diversos conceitos econômicos ortodoxos, presentemente hegemônicos entre economistas, jornalistas e governantes, atravessam o artigo de André Lara Resende, "Além da crise: desequilíbrio e credibilidade", publicado em 24/04/2009, neste jornal. Ele expõe, competentemente, os desequilíbrios que empurraram o mundo para a crise, o estágio atual das economias e seu lento desenvolvimento até alguma recuperação. O que se busca aqui é explicitar os pressupostos de sua teoria, criticá-los quando couber e propor alternativas onde ele não vê saídas.

O pensamento conservador atual, ensina Philip Arestis, corporifica a Macroeconomia do Novo Consenso que, dentre outras regras, propõe que:
1) o controle da inflação é o objetivo prioritário da política monetária, que deve ser operada por especialistas independentes;
2) que a política fiscal deve subordinar-se à política monetária;
3) o alto nível de atividade, que leva o desemprego para baixo de sua taxa natural, é a causa da inflação;
4) que a política monetária não tem efeitos permanentes sobre o nível de atividade; e
5) que não se deve estabelecer metas para a taxa de câmbio.

Desregulamentação e abertura das economias nacionais também são aceitas pelo consenso. A impossibilidade, presente nesse consenso e admitida por Resende, de lançar mão de políticas compensatórias anticíclicas, que fragiliza os países periféricos, já seria motivo suficiente para que algumas vozes, que não aceitam a inevitabilidade dessas práticas, dissonassem.

Resende explica o desequilíbrio global: de um lado, os enormes déficits americanos, fiscal e comercial, viabilizavam um forte crescimento econômico, sustentado pelo endividamento privado explosivo. Do outro, os países emergentes exportavam, faziam dólares, os mantinham em altos volumes de reservas, financiavam o déficit americano e, simultaneamente, reprimiam o consumo de sua população. Saliente-se que o mercado imobiliário era um importante canal para o endividamento das famílias nos países centrais, já que na bolha todos acreditavam que os preços só subiriam. Tratava-se de um equilíbrio insustentável no longo prazo, rompido pelo rebaixamento extemporâneo da classificação de risco de algumas empresas securitizadoras de créditos imobiliários.

Aos países emergentes restava ficar no bloco dos países marginalizados, como a Venezuela, ou assumir sua "inserção subordinada" , como o México, afirma Resende, que atribui "inequívoca" vantagem a esta última. Além de ser possível questionar essa vantagem, há inúmeros outros equilíbrios intermediários entre os extremos. Qual a razão para se imaginar que é impossível administrar a abertura comercial de um país? Aliás, seriam os benefícios da abertura sempre inquestionáveis? Ou são as elites dos países subdesenvolvidos que apenas querem consumir como num país central? Mesmo Celso Furtado achava que, no consumo suntuoso das elites, residia um dos poderosos entraves ao nosso desenvolvimento.

O governo americano proveu liquidez e as dívidas foram estatizadas, mas não desapareceram, o que dificulta a normalização, aponta Resende. O questionamento feito por muitos é que há concessão de renda para certos setores nessas intervenções. Foram protegidos aqueles que detêm depósitos nas instituições financeiras. Como no Proer, a ajuda brasileira aos bancos, pode-se dizer que era inevitável agir assim, contudo, deve-se apontar quem ganhou ou deixou de perder e quem efetivamente perdeu. A ameaça de crise sistêmica não é usada para viabilizar politicamente medidas que favorecem setores específicos?

Resende diz que a base da atual macroeconomia tem origem em Keynes, mas a "profunda revisão" de suas ideias certamente o faria abrir mão dessa paternidade. Keynes responderia, como fez em "The collected writings of JMK", que "o remédio correto para os ciclos econômicos não consiste em evitar os booms e assim nos manter em uma semidepressão, mas em abolir as depressões e nos manter desse modo permanentemente em quase-boom". Não seria o Brasil em um quase-boom mais adequado à realidade? Talvez até mais contagiante para as expectativas?

Os países emergentes adotaram uma postura mercantilista exportadora para conquistar credibilidade, admite Resende. Mas, a busca perene de credibilidade e confiança não é fruto de uma abertura financeira indevida e inútil? Bastaria fechar o país aos fluxos especulativos para recuperar o poder de fazer política monetária. A riqueza financeira não se preocupa com a produção e flui pelos países periféricos que se converteram em plataformas de sua valorização, afirmam diversos economistas. Qual é o pecado de, por exemplo, não querer dinheiro externo de curto prazo? Não é um contrassenso pagar altos juros para recursos especulativos? Ademais, sempre se perdoa o excessivo conservadorismo do Banco Central, mas combater ferrenhamente a inflação não ajuda mais quem tem dinheiro e prejudica mais quem depende da economia aquecida para conseguir emprego?

Resende teme que da crise resulte um redesenho repressor das atividades do mercado financeiro. O que seria, então, melhor: correr o risco de uma economia sobre-regulada ou de uma economia sub-regulada que pode gerar crises avassaladoras como a atual? Se o que se quer é proteger as instituições financeiras, o temor é pelo cerceamento de suas atividades. Se o que se quer é crescer com melhor distribuição de renda a resposta pode ser outra.

Resende advoga um novo marco institucional global e finaliza: "a globalização da economia e da cultura, fruto do progresso tecnológico, não parece ser um processo reversível sem um retrocesso do progresso da humanidade". Mesmo deixando de lado por um instante os danos ao planeta, cabe perguntar se esse progresso da humanidade que assistimos até essa crise é aquele que realmente queremos? Seria anacrônico o quadro político e institucional mundial ou o ideário econômico hegemônico? Ou os dois?

César Locatelli é economista e conselheiro fiscal. Foi diretor do antigo BankBoston e executivo do mercado financeiro por duas décadas.

(Reproduzido de Google Notas / Luis Nassif - Publicado originalmente no jornal Valor Econômico)

terça-feira, 12 de maio de 2009

SUGESTÃO DE LEITOR ABRE DISCUSSÃO INTERESSANTE

Por sugestão de um nosso leitor, o Fala Marisco! foi buscar a crítica de César Locatelli ao artigo de André Lara Resende.
Publicada no mesmo Valor Econômico, em 08/05/2009, a crítica de Locatelli encontra nos embasamentos teóricos e acadêmicos do artigo de Lara Resende respostas diametralmente opostas.

Para entender tal oposição, é preciso entender aquilo que cada um defende e a serviço de qual pensamento cada um se põe.
Locatelli não revela nehuma nova tese acadêmica. O velho Brizola já, há muito, falava algo semelhante. A novidade é que os olhos se abriram.

A crise que se impôs desnudou o modelo e fez com que a elite endeusadora do mercado, livre, aberto e impiedoso, descaradamente passasse a defender, a favor daquelas empresas e bancos que deliberadamente entraram na jogatina da especulação financeira mundial, a intervenção estatal, a pura e simples doação de recursos públicos para salva-los e que fosse empurrada para a sociedade a conta. Estava instituído o "solicialismo de mercado".

É a esta elite que Resende pertence e a ela que serve. Resende se agarrra ao pensamento neo-liberal, ultra-conservador, que muitos julgam ter iniciado no Brasil durante o governo Collor e ter ganho força durante o governo Cardoso, mas que, na verdade, ainda na décade de 1970 já era pregado abertamente nos meios acadêmicos, encontrando solo fértil no Departamento de Economia da PUC/RJ, de onde espalhou-se Brasil afora.

Era, de fato, um movimento mundial, capitaneado pelo FMI e pelo Banco Mundial, que ainda no governo militar do general Figueiredo, era propalado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso.

O hoje senador Francisco Dornelles foi o escolhido por Tancredo Neves para o ministério da fazenda do governo sucessor. Outro ferrenho defensor, já naquela época, do neo-liberalismo, Dornelles foi indicação irrecusável, posto que vinha da direção da Secretaria da Receita Federal do governo militar anterior e era garantia da continuidade do pensamento econômico que buscava hegemonia.

Tancredo não assumiu, mas Dornelles, claro, permaneceu. Contudo, a constituinte acabou por atrasar a plena implantação do neo-liberalismo no Brasil. Havia um fervilhar do debate político e proposições de fundo social transpassavam o Congresso.

Implantada a Constituição foi lançado o golpe final. Era fundamental eleger Fernando Collor, e toda sorte de artimanhas, manipulações e jogo sujo foram usados.
Collor foi eleito e quando não mais interessava (ou incomodava demais), foi retirado. Itamar foi mero tampão para a chegada de outro Fernando, o Cardoso, que fez o que fez e, incrível, não conseguiu destruir o Brasil.

Lula assumiu. Muita coisa mudou, mas a essência do modelo permanece. O Brasil, incrível, continua vivo. Mais vivo do que nunca. Grande país.

====

Amanhã, o Fala Marisco! reproduzirá, na íntegrar, a crítica do economista César Locatelli.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

SOCORRO FINANCEIRO GANHA CARTA-BRANCA

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090508/not_imp367352,0.php



Acordo entre PT e PSDB dá poderes ao governo para defender bancos

Felipe Recondo e Denise Madueño

Um acordo costurado por líderes do PT e do PSDB permitiu a aprovação de uma emenda à Medida Provisória (MP) 449 que concede uma verdadeira anistia aos ministros de Estado, presidentes do Banco Central (BC) e demais funcionários públicos que estão sendo processados por tomar decisões em defesa da solvência dos bancos que o Ministério Público considerou crimes contra o sistema financeiro.

As equipes econômicas dos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) sempre se queixaram do "oportunismo" dos processos e do fato de eles criarem insegurança nos agentes públicos que tomam essas decisões, mas os críticos da emenda aprovada ontem avaliam que a redação final do texto criou um vale-tudo jurídico, funcionando, na prática, como uma carta branca para o governo defender os bancos e justificar toda e qualquer medida adotada.

A emenda diz que os "agentes públicos" não sofrerão nenhum tipo de punição desde que as "medidas excepcionais" tenham sido tomadas e executadas "com o propósito de assegurar liquidez e solvência ao Sistema Financeiro Nacional, de regular o funcionamento dos mercados de câmbio e de capitais e de resguardar os interesses de depositantes e investidores".

EMENDA CACCIOLA

Apesar de dirigir o benefício aos "agentes públicos", se a emenda 19 não for vetada pelo presidente Lula ela também pode beneficiar banqueiros envolvidos em escândalos financeiros. No meio jurídico e entre parlamentares o texto já foi batizado de "Emenda Cacciola". Ela pode ser usada na defesa de Salvatore Cacciola, ex-dono do banco Marka, condenado por crime contra o sistema financeiro e atualmente preso no Brasil.

A proposta de inclusão de uma emenda na MP 449, que trata da renegociação de dívidas tributárias com a União (leia mais nesta página), foi do deputado Sebastião Madeira (PSDB-MA). A emenda não foi acolhida na primeira votação da medida provisória, na Câmara dos Deputados, mas foi apoiada e aprovada por petistas e tucanos na votação do Senado - o Ministério da Fazenda apoiou a emenda.

Ontem, na segunda votação pelos deputados, só o PSOL se pronunciou contra a emenda 19, contrabandeada para dentro da medida provisória. Na votação simbólica, o líder do PSOL, deputado Ivan Valente (SP), disse que "em nome da adoção de medidas anticrise vão acabar com a fiscalização e a responsabilização do agente público". O deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) defendeu explicitamente a aprovação da emenda 19 na MP que será encaminhada à sanção presidencial.

POR TABELA

A emenda serve, de acordo com advogados ouvidos pelo Estado, perfeitamente ao caso Cacciola. O ex-dono do Banco Marka se beneficiou de informações privilegiadas passadas pelo ex-presidente do Banco Central Chico Lopes às vésperas da desvalorização do real, em 1999.

Para evitar a quebra do banco e uma suposta crise sistêmica, Cacciola conseguiu do Banco Central uma ajuda superior a R$ 1 bilhão. Por causa disso, o ex-presidente do BC foi acusado e condenado pela Justiça.

Com a aprovação da emenda pelo Congresso e a promulgação pelo presidente da República, Chico Lopes poderia pedir para ser enquadrado na nova regra. Argumentaria que beneficiou o Marka para garantir a solvência do sistema financeiro, como prevê a emenda.

Se tiver sucesso, Cacciola será por tabela beneficiado - se o agente que praticou o ato ilegal não pode ser condenado, quem se beneficiou dele também não. Cacciola, portanto, poderia pedir à Justiça o mesmo benefício, o que só dependeria da apreciação do juiz.

Na justificativa para sua proposta, o deputado Sebastião Madeira afirmou que a medida "tem por objetivo preservar a liberdade de atuação dos agentes públicos responsáveis pela execução de medidas excepcionais com vistas a assegurar a liquidez e solvência" do sistema financeiro.

"Isso porque não podem tais agentes, no exercício de suas relevantes funções em tempos de crise econômica e financeira, ficar tolhidos pelo constante risco de responder por eventual malogro das medidas por eles tomadas no cumprimento de seu dever legal de zelar pela estabilidade do sistema financeiro", afirma o deputado na proposta. Não poderiam ser beneficiados os agentes que agissem comprovadamente de má-fé.

(Reproduzido de Google Notas / Luis Nassif - Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo)

sábado, 9 de maio de 2009

A PULVERIZAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA

Texto de Luis Nassif

A influência da Internet não se dá apenas através de blogs ou novos portais - rompendo o controle da informação da chamada grande mídia.

***

Um dos aspectos mais instigantes desse novo modelo é o do estilhaçamento das formas de coordenação da chamada opinião pública. A partir dos anos 80, essa coordenação foi exercida especialmente pelos grandes veículos associados à chamada sociedade civil organizada, que emerge da resistência contra a ditadura.

Havia um primeiro círculo de influência, onde eram geradas as ideias centrais. Depois, desses círculos as ideias transbordavam para um segundo círculo, de jornais, rádios e noticiário de televisão. Foi batizado do chamado efeito pedra no lago: joga-se a pedra que gera ondas concêntricas, que se espalham até tomar o lago todo. Foi assim com a campanha do impeachment de Fernando Collor; e quase assim com o movimento que quase devorou FHC em seu segundo governo.

***

As eleições de 2006 mostraram que esse modelo estava puído. Apesar de uma mídia majoritariamente contrária à sua candidatura, Lula foi reeleito por ampla maioria. Mesmo assim, as eleições não bastariam para convalidar um novo modelo, devido ao carisma de Lula e aos erros do governo FHC com a crise de energia.

***

Há outros fatores que são mais significativos para comprovar as mudanças trazidas pela Internet.

Os agentes dessa mudança são, primeiro, os Blogs, que permitiram a recuperação da diversidade - que desapareceu da grande mídia. Na Blogosfera é possível encontrar de tudo, de Blogs de extrema-direita à extrema-esquerda.

Em 2006, no auge do tiroteio midiático, havia poucos blogs fazendo o contraponto e formas ainda não estruturadas de repercussão das análises.

Agora, não, montaram-se estruturas informais agilíssimas. Basta uma informação ou análise de maior impacto sair em determinado blogs para imediatamente ser repercutido por outros - levada por leitores que pulam de galho em galho. Mas esse fenômeno é mais restrito aos blogs políticos.

***

Há um segundo nível de formação de opinião que são as comunidades ou redes sociais - tipo Orkut ou listas de discussão. Nesses ambientes, a opinião é formada de modo quase endógeno. Parte relevante dos participantes fecham-se entre si, trocando opiniões e chegando a consensos.

***

Finalmente, há uma nova opinião pública surgindo nas classes C e D, que começa a ganhar corpo nos últimos anos. Com o barateamento dos computadores e com algum impulso federal - como a redução de impostos - há um processo gradativo de inclusão digital, uma enormidade de blogs temáticos, sites regionais, ligados a cidades, ONGs, movimentos sociais, ajudando a colocar mais combustível na diversidade da Internet.

***

É cedo para saber os desdobramentos desse movimento. Especialmente para saber de que maneira será o novo modelo político, sem essa articulação grupos políticos-grupos econômicos-grande mídia definindo a agenda política.

(Fonte: Luis Nassif Online / Portal Ig)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (9)

(... continuação / final)
====

9 - Retomemos o fio do raciocínio. Na raiz da crise, apesar dos evidentes excessos do sistema financeiro, não está a falta de regulamentação. Estão ali, sim, os graves desequilíbrios macroeconômicos mundiais. O consumo dos países centrais, turbinado pelas novas formas de financiamento criadas por um sistema financeiro globalizado, foi a locomotiva do crescimento mundial. O esgotamento, nos países centrais, da capacidade de endividamento para consumir levou à crise, que paralisou a economia mundial no último trimestre de 2008.

Com a lição sobre 1929 bem compreendida, a política monetária americana tem inundado a economia com moeda e crédito, na tentativa de evitar uma depressão profunda. Ainda que essa política seja bem-sucedida, as economias dos Estados Unidos e dos demais países centrais, sobreendividados, deverão ficar estagnadas, sob a ameaça de deflação, por alguns anos. A assunção de dívidas privadas pelo setor público, para evitar o colapso do sistema financeiro, poderá ser bem-sucedida, mas ao custo de um grande aumento da dívida pública. Apesar do provável aumento expressivo dos gastos públicos, as economias centrais deverão continuar estagnadas enquanto durar o endividamento excessivo do setor privado. O período de digestão do excesso de dívidas será longo. Como, numa economia globalizada, as importações drenam o esforço doméstico de reativar a demanda interna através do gasto público e as exportações, ao contrário, contribuem para a recuperação da demanda interna, será grande a tentação, também nas economias centrais, para a adoção de uma postura protecionista.

No horizonte dos próximos anos, não há políticas domésticas capazes de revitalizar as economias centrais. O momento seria ideal para reverter o desequilíbrio das últimas décadas. Um agressivo programa de aumento do consumo e do investimento nos países periféricos seria a resposta mais adequada para a recuperação mundial. Além de contribuir para a recuperação das economias centrais, viria aliviar toda sorte de carências reprimidas na periferia. Ocorre que os países de economias periféricas, traumatizados pelas consequências de tentarem assumir o papel de agentes autônomos de sustentação da demanda mundial, adotaram uma atitude conservadora mercantilista, que não será facilmente modificada. Esse posicionamento foi-lhes estimulado - quando não imposto, mesmo em condições recessivas extremas - para obter credibilidade. A compreensível resistência a reverter a política conservadora dos países periféricos agravará o sentimento de irritação nos países centrais, o que deverá alimentar a tentação protecionista e nacionalista, sempre mais forte em momentos de crise.

A crise deixou claro o caráter anacrônico do quadro político e institucional mundial para lidar com a ameaça de uma recessão sincronizada. O quadro político não acompanhou a velocidade com que o mundo se globalizou. O arcabouço institucional não se adaptou à revolução tecnológica que levou à integração econômica. A crise dos anos 1930 terminou por levar, em 1944, à conferência de Bretton Woods, da qual saiu a tentativa de criar uma ordem monetária e instituições econômico-financeiras internacionais. Mais de seis décadas, muitas crises e algumas revisões depois, o sistema está definitivamente ultrapassado.

Não basta o esforço de dar fôlego às instituições criadas no âmbito do fim da Segunda Guerra por meio da incorporação dos novos atores da cena mundial. Coordenação internacional parece, hoje, a fórmula mágica. É preciso, simultaneamente, coordenar os esforços de políticas fiscais e monetárias, evitar a tentação protecionista, discutir uma regulação financeira harmônica e, sobretudo, reverter os desequilíbrios macroeconômicos das últimas décadas. Sem o arcabouço institucional adequado, a coordenação não pode almejar mais do que as declarações de boas intenções, como as da recente reunião do G-20 realizada em Londres.

A questão da moeda-reserva mundial foi recentemente retomada pelo presidente do banco central chinês. À primeira vista, o fato poderia ser entendido como provocação ou retaliação às reiteradas declarações das autoridades americanas de que a China deveria valorizar sua moeda. O artigo em que Zhou Xiaochuan expôs suas ideias é sensato . A moeda-reserva é o ponto crucial para que se possa progredir em direção a um mundo mais equilibrado. O desequilíbrio das últimas décadas se deve, por um lado, ao aumento irrestrito das despesas e do endividamento dos países centrais e, por outro, a uma postura nacional exportadora conservadora, voltada para a acumulação de reservas externas pelos países periféricos. A questão da credibilidade, que determina em última instância a assimetria a que estão submetidos os países emissores de moeda-reserva e os demais, está na raiz dos dois tipos de comportamento.

A moeda moderna não tem lastro físico, é meramente fiduciária. Está baseada na credibilidade do emissor. Credibilidade que depende, primordialmente, da percepção de solidez econômico-financeira do emissor e do seu sentido de responsabilidade. Responsabilidade para não abusar do privilégio outorgado. Mas a questão não se esgota aí. A credibilidade da moeda está baseada na percepção de solidez de todo um arcabouço econômico, mas, sobretudo, político, jurídico e institucional, do emissor. Uma moeda não ganha o direito de ser moeda-reserva, de ser utilizada para transações internacionais, sem a percepção da solidez econômica, política, jurídica e institucional de seu emissor. O dólar americano, por esses critérios, foi uma alternativa superior a qualquer outra desde Bretton Woods. Compreende-se o retumbante fracasso da tentativa de transformar a moeda artificial do FMI, o Direito Especial de Saque, em moeda mundial.

Nas últimas décadas, o persistente e crescente desequilíbrio das contas externas americanas provocou desconfiança quanto à posição tão dominante do dólar como moeda de denominação das transações internacionais. A magnitude dos déficits em conta-corrente dos Estados Unidos, que teria sido suficiente para provocar o colapso de qualquer outra moeda, já havia criado desconforto em relação ao dólar como moeda-reserva mundial. O aumento da aversão ao risco, com o eclodir da crise, demonstrou que ainda não havia alternativa. O dólar confirmou sua condição de refúgio e valorizou-se em relação a todas as moedas. É evidente, entretanto, o desconforto, a sensação de que este não é mais o porto seguro que um dia foi, mas sustentado apenas pelo hábito e pela falta de alternativas.

O mal-estar em relação ao dólar só se agravou com a agressiva política adotada pelo Fed para evitar o colapso do sistema financeiro. Aos Estados Unidos pode ser interessante, para evitar a depressão, adotar uma política monetária heterodoxa agressiva e inundar o mercado de dólares, mas sua credibilidade como emissor de moeda-reserva ficaria gravemente arranhada. A possibilidade de que, em algum momento à frente, o excesso de moeda e de dívida pública americana possa provocar inflação e brusca desvalorização do dólar é hoje uma preocupação que não pode ser descartada. Desde que não saiam do controle, tanto a inflação, quanto a desvalorização do dólar interessam aos Estados Unidos. Auxiliariam na redução do valor real das dívidas e estimulariam a economia. Compreende-se, assim, que a China, o maior detentor de títulos de dívida pública americana, esteja desconfortável e proponha a criação de uma moeda-reserva supranacional.

Embora inflação e desvalorização do dólar não pareçam ainda uma ameaça concreta num mundo à beira da deflação, não se deve subestimar seu impacto potencialmente desagregador, tanto sobre as relações comerciais e financeiras, quanto sobre políticas no mundo. A criação de uma verdadeira moeda-reserva supranacional seria a forma de minimizar o impacto de uma eventual desvalorização do dólar e de reverter a assimetria que resultou no desequilíbrio macroeconômico das últimas décadas. Antes da moeda mundial, entretanto, será preciso criar um emissor supranacional com credibilidade.

A globalização da economia e da cultura, fruto do progresso tecnológico, não parece ser um processo reversível sem um retrocesso do progresso da humanidade. Economia e cultura estão cada vez mais globalizadas, mas a política continua restrita aos limites geográficos dos estados nacionais. Os grandes temas são hoje mundiais. A homogeneização institucional, a criação de uma grande jurisdição supranacional, são o único caminho possível para lidar com os desafios de um mundo globalizado e submetido a limites a cada dia mais estreitos. Seria ingênuo imaginar que se avançará rapidamente na construção de um novo arcabouço jurídico-institucional supranacional. Sua necessidade já é evidente, mas o caminho é longo. A compreensão de que os desequilíbrios macroeconômicos que levaram à crise atual e que dificultam sua superação só poderão ser corrigidos num novo marco institucional global deve dar um sentido de urgência à agenda.

*André Lara Resende, economista, colaborou na formulação dos planos Cruzado e Real. Foi diretor do Banco Central e presidente do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso.

====

O texto que hoje encerramos a apresentação foi extraído do sítio do Ministério das Relações Exteriores, em sua resenha de notícias. É um artigo escrito por André Lara Resende, dividido em nove partes, e publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
Tem um pouco de "economês", mas fácil de ser entendido.
O blog Fala Marisco! orienta que seja lido com profundo senso crítico, pois o artigo deixa transparecer muito do preconceito que a elite brasileira, retrógrada e entreguista, sempre impingiu ao povo brasileiro: eles, seres superiores, a nata da sociedade internacional, e nós outros mera ralé, que insiste em sobreviver e viver a atrapalhá-los.


Ministério das Relações Exteriores
Imprensa
Seleção diária de notícias


Jornal Valor Econômico

Título: Além da crise: desequilíbrio e credibilidade
Data: 24/04/2009
Crédito: André Lara Resende

A recuperação global depende de uma agenda de coordenação que abra espaço para a reversão de desajustes macroeconômicos e recomposição da confiança em países e moedas.

Valor Econômico