quinta-feira, 7 de maio de 2009

ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (9)

(... continuação / final)
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9 - Retomemos o fio do raciocínio. Na raiz da crise, apesar dos evidentes excessos do sistema financeiro, não está a falta de regulamentação. Estão ali, sim, os graves desequilíbrios macroeconômicos mundiais. O consumo dos países centrais, turbinado pelas novas formas de financiamento criadas por um sistema financeiro globalizado, foi a locomotiva do crescimento mundial. O esgotamento, nos países centrais, da capacidade de endividamento para consumir levou à crise, que paralisou a economia mundial no último trimestre de 2008.

Com a lição sobre 1929 bem compreendida, a política monetária americana tem inundado a economia com moeda e crédito, na tentativa de evitar uma depressão profunda. Ainda que essa política seja bem-sucedida, as economias dos Estados Unidos e dos demais países centrais, sobreendividados, deverão ficar estagnadas, sob a ameaça de deflação, por alguns anos. A assunção de dívidas privadas pelo setor público, para evitar o colapso do sistema financeiro, poderá ser bem-sucedida, mas ao custo de um grande aumento da dívida pública. Apesar do provável aumento expressivo dos gastos públicos, as economias centrais deverão continuar estagnadas enquanto durar o endividamento excessivo do setor privado. O período de digestão do excesso de dívidas será longo. Como, numa economia globalizada, as importações drenam o esforço doméstico de reativar a demanda interna através do gasto público e as exportações, ao contrário, contribuem para a recuperação da demanda interna, será grande a tentação, também nas economias centrais, para a adoção de uma postura protecionista.

No horizonte dos próximos anos, não há políticas domésticas capazes de revitalizar as economias centrais. O momento seria ideal para reverter o desequilíbrio das últimas décadas. Um agressivo programa de aumento do consumo e do investimento nos países periféricos seria a resposta mais adequada para a recuperação mundial. Além de contribuir para a recuperação das economias centrais, viria aliviar toda sorte de carências reprimidas na periferia. Ocorre que os países de economias periféricas, traumatizados pelas consequências de tentarem assumir o papel de agentes autônomos de sustentação da demanda mundial, adotaram uma atitude conservadora mercantilista, que não será facilmente modificada. Esse posicionamento foi-lhes estimulado - quando não imposto, mesmo em condições recessivas extremas - para obter credibilidade. A compreensível resistência a reverter a política conservadora dos países periféricos agravará o sentimento de irritação nos países centrais, o que deverá alimentar a tentação protecionista e nacionalista, sempre mais forte em momentos de crise.

A crise deixou claro o caráter anacrônico do quadro político e institucional mundial para lidar com a ameaça de uma recessão sincronizada. O quadro político não acompanhou a velocidade com que o mundo se globalizou. O arcabouço institucional não se adaptou à revolução tecnológica que levou à integração econômica. A crise dos anos 1930 terminou por levar, em 1944, à conferência de Bretton Woods, da qual saiu a tentativa de criar uma ordem monetária e instituições econômico-financeiras internacionais. Mais de seis décadas, muitas crises e algumas revisões depois, o sistema está definitivamente ultrapassado.

Não basta o esforço de dar fôlego às instituições criadas no âmbito do fim da Segunda Guerra por meio da incorporação dos novos atores da cena mundial. Coordenação internacional parece, hoje, a fórmula mágica. É preciso, simultaneamente, coordenar os esforços de políticas fiscais e monetárias, evitar a tentação protecionista, discutir uma regulação financeira harmônica e, sobretudo, reverter os desequilíbrios macroeconômicos das últimas décadas. Sem o arcabouço institucional adequado, a coordenação não pode almejar mais do que as declarações de boas intenções, como as da recente reunião do G-20 realizada em Londres.

A questão da moeda-reserva mundial foi recentemente retomada pelo presidente do banco central chinês. À primeira vista, o fato poderia ser entendido como provocação ou retaliação às reiteradas declarações das autoridades americanas de que a China deveria valorizar sua moeda. O artigo em que Zhou Xiaochuan expôs suas ideias é sensato . A moeda-reserva é o ponto crucial para que se possa progredir em direção a um mundo mais equilibrado. O desequilíbrio das últimas décadas se deve, por um lado, ao aumento irrestrito das despesas e do endividamento dos países centrais e, por outro, a uma postura nacional exportadora conservadora, voltada para a acumulação de reservas externas pelos países periféricos. A questão da credibilidade, que determina em última instância a assimetria a que estão submetidos os países emissores de moeda-reserva e os demais, está na raiz dos dois tipos de comportamento.

A moeda moderna não tem lastro físico, é meramente fiduciária. Está baseada na credibilidade do emissor. Credibilidade que depende, primordialmente, da percepção de solidez econômico-financeira do emissor e do seu sentido de responsabilidade. Responsabilidade para não abusar do privilégio outorgado. Mas a questão não se esgota aí. A credibilidade da moeda está baseada na percepção de solidez de todo um arcabouço econômico, mas, sobretudo, político, jurídico e institucional, do emissor. Uma moeda não ganha o direito de ser moeda-reserva, de ser utilizada para transações internacionais, sem a percepção da solidez econômica, política, jurídica e institucional de seu emissor. O dólar americano, por esses critérios, foi uma alternativa superior a qualquer outra desde Bretton Woods. Compreende-se o retumbante fracasso da tentativa de transformar a moeda artificial do FMI, o Direito Especial de Saque, em moeda mundial.

Nas últimas décadas, o persistente e crescente desequilíbrio das contas externas americanas provocou desconfiança quanto à posição tão dominante do dólar como moeda de denominação das transações internacionais. A magnitude dos déficits em conta-corrente dos Estados Unidos, que teria sido suficiente para provocar o colapso de qualquer outra moeda, já havia criado desconforto em relação ao dólar como moeda-reserva mundial. O aumento da aversão ao risco, com o eclodir da crise, demonstrou que ainda não havia alternativa. O dólar confirmou sua condição de refúgio e valorizou-se em relação a todas as moedas. É evidente, entretanto, o desconforto, a sensação de que este não é mais o porto seguro que um dia foi, mas sustentado apenas pelo hábito e pela falta de alternativas.

O mal-estar em relação ao dólar só se agravou com a agressiva política adotada pelo Fed para evitar o colapso do sistema financeiro. Aos Estados Unidos pode ser interessante, para evitar a depressão, adotar uma política monetária heterodoxa agressiva e inundar o mercado de dólares, mas sua credibilidade como emissor de moeda-reserva ficaria gravemente arranhada. A possibilidade de que, em algum momento à frente, o excesso de moeda e de dívida pública americana possa provocar inflação e brusca desvalorização do dólar é hoje uma preocupação que não pode ser descartada. Desde que não saiam do controle, tanto a inflação, quanto a desvalorização do dólar interessam aos Estados Unidos. Auxiliariam na redução do valor real das dívidas e estimulariam a economia. Compreende-se, assim, que a China, o maior detentor de títulos de dívida pública americana, esteja desconfortável e proponha a criação de uma moeda-reserva supranacional.

Embora inflação e desvalorização do dólar não pareçam ainda uma ameaça concreta num mundo à beira da deflação, não se deve subestimar seu impacto potencialmente desagregador, tanto sobre as relações comerciais e financeiras, quanto sobre políticas no mundo. A criação de uma verdadeira moeda-reserva supranacional seria a forma de minimizar o impacto de uma eventual desvalorização do dólar e de reverter a assimetria que resultou no desequilíbrio macroeconômico das últimas décadas. Antes da moeda mundial, entretanto, será preciso criar um emissor supranacional com credibilidade.

A globalização da economia e da cultura, fruto do progresso tecnológico, não parece ser um processo reversível sem um retrocesso do progresso da humanidade. Economia e cultura estão cada vez mais globalizadas, mas a política continua restrita aos limites geográficos dos estados nacionais. Os grandes temas são hoje mundiais. A homogeneização institucional, a criação de uma grande jurisdição supranacional, são o único caminho possível para lidar com os desafios de um mundo globalizado e submetido a limites a cada dia mais estreitos. Seria ingênuo imaginar que se avançará rapidamente na construção de um novo arcabouço jurídico-institucional supranacional. Sua necessidade já é evidente, mas o caminho é longo. A compreensão de que os desequilíbrios macroeconômicos que levaram à crise atual e que dificultam sua superação só poderão ser corrigidos num novo marco institucional global deve dar um sentido de urgência à agenda.

*André Lara Resende, economista, colaborou na formulação dos planos Cruzado e Real. Foi diretor do Banco Central e presidente do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso.

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O texto que hoje encerramos a apresentação foi extraído do sítio do Ministério das Relações Exteriores, em sua resenha de notícias. É um artigo escrito por André Lara Resende, dividido em nove partes, e publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
Tem um pouco de "economês", mas fácil de ser entendido.
O blog Fala Marisco! orienta que seja lido com profundo senso crítico, pois o artigo deixa transparecer muito do preconceito que a elite brasileira, retrógrada e entreguista, sempre impingiu ao povo brasileiro: eles, seres superiores, a nata da sociedade internacional, e nós outros mera ralé, que insiste em sobreviver e viver a atrapalhá-los.


Ministério das Relações Exteriores
Imprensa
Seleção diária de notícias


Jornal Valor Econômico

Título: Além da crise: desequilíbrio e credibilidade
Data: 24/04/2009
Crédito: André Lara Resende

A recuperação global depende de uma agenda de coordenação que abra espaço para a reversão de desajustes macroeconômicos e recomposição da confiança em países e moedas.

Valor Econômico

Um comentário:

Anônimo disse...

Proponho avaliar a crítica que César Locatelli faz, no mesmo Valor Econômico de 8 de maio, ao artigo de Lara Resende.