domingo, 16 de novembro de 2008

PÓS KYOTO - II

Kyoto reafirma a tendência: Estados distribuem "direitos de poluir", como se o planeta fosse de quem o destrói

Criado em 1988 a pedido do G7, o Painel Intergovernamental para Mudança Climática (IPCC, em inglês) tentava alertar os governos sobre as conseqüências do aquecimento climático. Em 1992, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) era aberta à ratificação e receberia uma resposta favorável da quase totalidade dos Estados. Ela fixava como meta “estabilizar as concentrações de gás de efeito estufa na atmosfera”, mas sem indicar os meios para isso, nem objetivos precisos. Essa fase operacional teve prosseguimento num tratado, o Protocolo de Kyoto, cujas primeiras negociações começaram em dezembro de 1997. Como o sistema das Nações Unidas impõe a unanimidade, foi dura a batalha entre os países industrializados e os países em desenvolvimento. Seriam necessários cerca de quatro anos para chegar, em 10 de novembro de 2001, aos Acordos de Marrakesh — tradução jurídica do Protocolo de Kyoto.
A retirada dos Estados Unidos, após uma votação em que cerca de uma centena de senadores norte-americanos pronunciou-se contra a ratificação e nenhum a favor, fez com que a estimativa de redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) tivesse que ser recalculada, para apenas 40% do valor inicialmente estabelecido. Assim, o protocolo estabeleceu o compromisso de reduzir em 5,2%, até 2012, as emissões de GEE, em relação ao nível de 1990. Isso correspondia a uma redução anual de 2% nas emissões. Se acrescentarmos que, no momento em que se negociavam as modalidades de aplicação, as emissões já eram inferiores em 4,8% às de 1990, a ambição real limitava-se a uma diminuição de 0,16% do volume anual de GEE lançado na atmosfera! Claro que esse número não figurou em parte alguma dos comunicados oficiais, porque pareceria ridículo comparado ao que se almejava.
Em contrapartida dessa minúscula concessão, o lobby dos maiores poluidores pôde obter mecanismos ditos “de flexibilidade”, dos quais planejava extrair o máximo de benefícios.
O primeiro é o famoso mercado de “licenças de emissões negociáveis” imposto pelos Estados Unidos, sob o pretexto de que sua experiência com o SO2 funcionou. Pouco importa que o território implicado não seja mais homogêneo, que o grosso das fontes emissoras sejam, sem termo de comparação, as centrais de carvão norte-americanas, ou ainda que o Protocolo de Kyoto não se apóie em nenhum quadro de regulamentação comum.
Cada Estado inscrito no Anexo B definirá um plano de alocação de cotas que permita distribuir, como no início de uma partida de Banco Imobiliário, o volume de direitos de emitir CO2 a suas instalações mais poluentes. Obviamente, os governos não se rebaixarão a fazer os industriais pagarem por essas cotas, o que poderia gerar receitas fiscais capazes de conduzir políticas públicas ambiciosas em favor do meio-ambiente. Trata-se realmente de “direitos de poluir”, essa gratuidade supondo que o meio-ambiente pertence, na falta de coisa melhor, aos que o agridem.

A União Européia vai além. Os "direitos" são negociados para entrega à vista ou no "mercado futuro"

Uma vez creditadas as contas-carbono, as empresas submetem-se a uma única obrigação: restituir, no fim do período de funcionamento, a equivalência das cotas e das toneladas de CO2 produzidas. Essa “restituição” tem a forma de uma simples operação contábil. Destinadas ao passivo das empresas, as emissões anuais devem ser equilibradas pelo volume de cotas inicialmente atribuído, acrescido das compras e subtraído das vendas.
A realização de projetos que evitem gases de efeito estufa (implantação de geradores eólicos, captação de metano em aterros sanitários, uso de combustíveis alternativos, desenvolvimento de áreas reflorestadas etc.) pode também permitir uma transferência de cotas entre signatários do protocolo. Trata-se da Implementação Conjunta (IC), no qual o país anfitrião cede uma parte de suas cotas aos investidores, proporcionalmente às emissões evitadas.
Mas os países em desenvolvimento, encabeçados pelo Brasil e interessados em atrair novos capitais externos, conseguiram que os Estados não inscritos no Anexo B pudessem igualmente acolher tais projetos. Nesse caso, já que o país anfitrião não tem compromisso em relação ao Protocolo de Kyoto, o volume anual de GEE evitado enseja a criação de novos créditos, batizados de URCE (unidades de redução certificada das emissões). No mercado mundial, essa operação equivale, portanto, a aumentar o volume de moeda-carbono. Como no caso da IC, os créditos URCE são atribuídos gratuitamente pelas Nações Unidas aos investidores, que poderão ou utilizá-los para cumprir seus compromissos (se estão envolvidos num plano de alocação), ou vendê-los no mercado, da mesma forma que uma cota alocada por um Estado. Essa idéia formidável leva o nome de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e permite não mais se preocupar com a escassez de cotas, cuja reserva pode ser ampliada à vontade.
Para preparar a fase de aplicação do dispositivo previsto no Protocolo de Kyoto referente ao período 2008-2012, a União Européia lançou, já em 2005, seu próprio mercado do carbono. Os dois primeiros anos de funcionamento são muito ricos de informações e revelam todos os riscos envolvidos na aplicação de receitas tão liberais.
O mercado europeu do carbono está calcado no funcionamento dos mercados financeiros. As permutas podem ser feitas tanto diretamente entre detentores de cotas (“amigavelmente”), como em praças financeiras organizadas (Bolsas de CO2) que permitem facilitar e assegurar as transações. Estas últimas se fazem ou à vista, ou “a termo” — isto é, numa data de entrega determinada com antecedência. Assim, é possível acompanhar a evolução de dois preços diferentes para o carbono: o preço da tonelada à vista (dito spot) e o preço da tonelada entregue em dezembro de 2008 (dita “Futura”).

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