quarta-feira, 25 de março de 2009

EU SEI MAS NÃO DEVIA

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números de mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz. A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a luta para ganhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que se precisa. E a pagar mais do que as coisas valem. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. e porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável, à contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma a evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para popuar a vida, que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde a si mesma.


Autor: Programa Rede Jovem

Nome: Por Marina Colassanti

E-mail: comunicacao@redejovem.org.br

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