Bastaria fechar o país aos fluxos especulativos para recuperar o poder da política monetária
César Locatelli
Diversos conceitos econômicos ortodoxos, presentemente hegemônicos entre economistas, jornalistas e governantes, atravessam o artigo de André Lara Resende, "Além da crise: desequilíbrio e credibilidade", publicado em 24/04/2009, neste jornal. Ele expõe, competentemente, os desequilíbrios que empurraram o mundo para a crise, o estágio atual das economias e seu lento desenvolvimento até alguma recuperação. O que se busca aqui é explicitar os pressupostos de sua teoria, criticá-los quando couber e propor alternativas onde ele não vê saídas.
O pensamento conservador atual, ensina Philip Arestis, corporifica a Macroeconomia do Novo Consenso que, dentre outras regras, propõe que:
1) o controle da inflação é o objetivo prioritário da política monetária, que deve ser operada por especialistas independentes;
2) que a política fiscal deve subordinar-se à política monetária;
3) o alto nível de atividade, que leva o desemprego para baixo de sua taxa natural, é a causa da inflação;
4) que a política monetária não tem efeitos permanentes sobre o nível de atividade; e
5) que não se deve estabelecer metas para a taxa de câmbio.
Desregulamentação e abertura das economias nacionais também são aceitas pelo consenso. A impossibilidade, presente nesse consenso e admitida por Resende, de lançar mão de políticas compensatórias anticíclicas, que fragiliza os países periféricos, já seria motivo suficiente para que algumas vozes, que não aceitam a inevitabilidade dessas práticas, dissonassem.
Resende explica o desequilíbrio global: de um lado, os enormes déficits americanos, fiscal e comercial, viabilizavam um forte crescimento econômico, sustentado pelo endividamento privado explosivo. Do outro, os países emergentes exportavam, faziam dólares, os mantinham em altos volumes de reservas, financiavam o déficit americano e, simultaneamente, reprimiam o consumo de sua população. Saliente-se que o mercado imobiliário era um importante canal para o endividamento das famílias nos países centrais, já que na bolha todos acreditavam que os preços só subiriam. Tratava-se de um equilíbrio insustentável no longo prazo, rompido pelo rebaixamento extemporâneo da classificação de risco de algumas empresas securitizadoras de créditos imobiliários.
Aos países emergentes restava ficar no bloco dos países marginalizados, como a Venezuela, ou assumir sua "inserção subordinada" , como o México, afirma Resende, que atribui "inequívoca" vantagem a esta última. Além de ser possível questionar essa vantagem, há inúmeros outros equilíbrios intermediários entre os extremos. Qual a razão para se imaginar que é impossível administrar a abertura comercial de um país? Aliás, seriam os benefícios da abertura sempre inquestionáveis? Ou são as elites dos países subdesenvolvidos que apenas querem consumir como num país central? Mesmo Celso Furtado achava que, no consumo suntuoso das elites, residia um dos poderosos entraves ao nosso desenvolvimento.
O governo americano proveu liquidez e as dívidas foram estatizadas, mas não desapareceram, o que dificulta a normalização, aponta Resende. O questionamento feito por muitos é que há concessão de renda para certos setores nessas intervenções. Foram protegidos aqueles que detêm depósitos nas instituições financeiras. Como no Proer, a ajuda brasileira aos bancos, pode-se dizer que era inevitável agir assim, contudo, deve-se apontar quem ganhou ou deixou de perder e quem efetivamente perdeu. A ameaça de crise sistêmica não é usada para viabilizar politicamente medidas que favorecem setores específicos?
Resende diz que a base da atual macroeconomia tem origem em Keynes, mas a "profunda revisão" de suas ideias certamente o faria abrir mão dessa paternidade. Keynes responderia, como fez em "The collected writings of JMK", que "o remédio correto para os ciclos econômicos não consiste em evitar os booms e assim nos manter em uma semidepressão, mas em abolir as depressões e nos manter desse modo permanentemente em quase-boom". Não seria o Brasil em um quase-boom mais adequado à realidade? Talvez até mais contagiante para as expectativas?
Os países emergentes adotaram uma postura mercantilista exportadora para conquistar credibilidade, admite Resende. Mas, a busca perene de credibilidade e confiança não é fruto de uma abertura financeira indevida e inútil? Bastaria fechar o país aos fluxos especulativos para recuperar o poder de fazer política monetária. A riqueza financeira não se preocupa com a produção e flui pelos países periféricos que se converteram em plataformas de sua valorização, afirmam diversos economistas. Qual é o pecado de, por exemplo, não querer dinheiro externo de curto prazo? Não é um contrassenso pagar altos juros para recursos especulativos? Ademais, sempre se perdoa o excessivo conservadorismo do Banco Central, mas combater ferrenhamente a inflação não ajuda mais quem tem dinheiro e prejudica mais quem depende da economia aquecida para conseguir emprego?
Resende teme que da crise resulte um redesenho repressor das atividades do mercado financeiro. O que seria, então, melhor: correr o risco de uma economia sobre-regulada ou de uma economia sub-regulada que pode gerar crises avassaladoras como a atual? Se o que se quer é proteger as instituições financeiras, o temor é pelo cerceamento de suas atividades. Se o que se quer é crescer com melhor distribuição de renda a resposta pode ser outra.
Resende advoga um novo marco institucional global e finaliza: "a globalização da economia e da cultura, fruto do progresso tecnológico, não parece ser um processo reversível sem um retrocesso do progresso da humanidade". Mesmo deixando de lado por um instante os danos ao planeta, cabe perguntar se esse progresso da humanidade que assistimos até essa crise é aquele que realmente queremos? Seria anacrônico o quadro político e institucional mundial ou o ideário econômico hegemônico? Ou os dois?
César Locatelli é economista e conselheiro fiscal. Foi diretor do antigo BankBoston e executivo do mercado financeiro por duas décadas.
(Reproduzido de Google Notas / Luis Nassif - Publicado originalmente no jornal Valor Econômico)
quarta-feira, 13 de maio de 2009
terça-feira, 12 de maio de 2009
SUGESTÃO DE LEITOR ABRE DISCUSSÃO INTERESSANTE
Por sugestão de um nosso leitor, o Fala Marisco! foi buscar a crítica de César Locatelli ao artigo de André Lara Resende.
Publicada no mesmo Valor Econômico, em 08/05/2009, a crítica de Locatelli encontra nos embasamentos teóricos e acadêmicos do artigo de Lara Resende respostas diametralmente opostas.
Para entender tal oposição, é preciso entender aquilo que cada um defende e a serviço de qual pensamento cada um se põe.
Locatelli não revela nehuma nova tese acadêmica. O velho Brizola já, há muito, falava algo semelhante. A novidade é que os olhos se abriram.
A crise que se impôs desnudou o modelo e fez com que a elite endeusadora do mercado, livre, aberto e impiedoso, descaradamente passasse a defender, a favor daquelas empresas e bancos que deliberadamente entraram na jogatina da especulação financeira mundial, a intervenção estatal, a pura e simples doação de recursos públicos para salva-los e que fosse empurrada para a sociedade a conta. Estava instituído o "solicialismo de mercado".
É a esta elite que Resende pertence e a ela que serve. Resende se agarrra ao pensamento neo-liberal, ultra-conservador, que muitos julgam ter iniciado no Brasil durante o governo Collor e ter ganho força durante o governo Cardoso, mas que, na verdade, ainda na décade de 1970 já era pregado abertamente nos meios acadêmicos, encontrando solo fértil no Departamento de Economia da PUC/RJ, de onde espalhou-se Brasil afora.
Era, de fato, um movimento mundial, capitaneado pelo FMI e pelo Banco Mundial, que ainda no governo militar do general Figueiredo, era propalado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso.
O hoje senador Francisco Dornelles foi o escolhido por Tancredo Neves para o ministério da fazenda do governo sucessor. Outro ferrenho defensor, já naquela época, do neo-liberalismo, Dornelles foi indicação irrecusável, posto que vinha da direção da Secretaria da Receita Federal do governo militar anterior e era garantia da continuidade do pensamento econômico que buscava hegemonia.
Tancredo não assumiu, mas Dornelles, claro, permaneceu. Contudo, a constituinte acabou por atrasar a plena implantação do neo-liberalismo no Brasil. Havia um fervilhar do debate político e proposições de fundo social transpassavam o Congresso.
Implantada a Constituição foi lançado o golpe final. Era fundamental eleger Fernando Collor, e toda sorte de artimanhas, manipulações e jogo sujo foram usados.
Collor foi eleito e quando não mais interessava (ou incomodava demais), foi retirado. Itamar foi mero tampão para a chegada de outro Fernando, o Cardoso, que fez o que fez e, incrível, não conseguiu destruir o Brasil.
Lula assumiu. Muita coisa mudou, mas a essência do modelo permanece. O Brasil, incrível, continua vivo. Mais vivo do que nunca. Grande país.
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Amanhã, o Fala Marisco! reproduzirá, na íntegrar, a crítica do economista César Locatelli.
Publicada no mesmo Valor Econômico, em 08/05/2009, a crítica de Locatelli encontra nos embasamentos teóricos e acadêmicos do artigo de Lara Resende respostas diametralmente opostas.
Para entender tal oposição, é preciso entender aquilo que cada um defende e a serviço de qual pensamento cada um se põe.
Locatelli não revela nehuma nova tese acadêmica. O velho Brizola já, há muito, falava algo semelhante. A novidade é que os olhos se abriram.
A crise que se impôs desnudou o modelo e fez com que a elite endeusadora do mercado, livre, aberto e impiedoso, descaradamente passasse a defender, a favor daquelas empresas e bancos que deliberadamente entraram na jogatina da especulação financeira mundial, a intervenção estatal, a pura e simples doação de recursos públicos para salva-los e que fosse empurrada para a sociedade a conta. Estava instituído o "solicialismo de mercado".
É a esta elite que Resende pertence e a ela que serve. Resende se agarrra ao pensamento neo-liberal, ultra-conservador, que muitos julgam ter iniciado no Brasil durante o governo Collor e ter ganho força durante o governo Cardoso, mas que, na verdade, ainda na décade de 1970 já era pregado abertamente nos meios acadêmicos, encontrando solo fértil no Departamento de Economia da PUC/RJ, de onde espalhou-se Brasil afora.
Era, de fato, um movimento mundial, capitaneado pelo FMI e pelo Banco Mundial, que ainda no governo militar do general Figueiredo, era propalado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso.
O hoje senador Francisco Dornelles foi o escolhido por Tancredo Neves para o ministério da fazenda do governo sucessor. Outro ferrenho defensor, já naquela época, do neo-liberalismo, Dornelles foi indicação irrecusável, posto que vinha da direção da Secretaria da Receita Federal do governo militar anterior e era garantia da continuidade do pensamento econômico que buscava hegemonia.
Tancredo não assumiu, mas Dornelles, claro, permaneceu. Contudo, a constituinte acabou por atrasar a plena implantação do neo-liberalismo no Brasil. Havia um fervilhar do debate político e proposições de fundo social transpassavam o Congresso.
Implantada a Constituição foi lançado o golpe final. Era fundamental eleger Fernando Collor, e toda sorte de artimanhas, manipulações e jogo sujo foram usados.
Collor foi eleito e quando não mais interessava (ou incomodava demais), foi retirado. Itamar foi mero tampão para a chegada de outro Fernando, o Cardoso, que fez o que fez e, incrível, não conseguiu destruir o Brasil.
Lula assumiu. Muita coisa mudou, mas a essência do modelo permanece. O Brasil, incrível, continua vivo. Mais vivo do que nunca. Grande país.
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Amanhã, o Fala Marisco! reproduzirá, na íntegrar, a crítica do economista César Locatelli.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
SOCORRO FINANCEIRO GANHA CARTA-BRANCA
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090508/not_imp367352,0.php
Acordo entre PT e PSDB dá poderes ao governo para defender bancos
Felipe Recondo e Denise Madueño
Um acordo costurado por líderes do PT e do PSDB permitiu a aprovação de uma emenda à Medida Provisória (MP) 449 que concede uma verdadeira anistia aos ministros de Estado, presidentes do Banco Central (BC) e demais funcionários públicos que estão sendo processados por tomar decisões em defesa da solvência dos bancos que o Ministério Público considerou crimes contra o sistema financeiro.
As equipes econômicas dos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) sempre se queixaram do "oportunismo" dos processos e do fato de eles criarem insegurança nos agentes públicos que tomam essas decisões, mas os críticos da emenda aprovada ontem avaliam que a redação final do texto criou um vale-tudo jurídico, funcionando, na prática, como uma carta branca para o governo defender os bancos e justificar toda e qualquer medida adotada.
A emenda diz que os "agentes públicos" não sofrerão nenhum tipo de punição desde que as "medidas excepcionais" tenham sido tomadas e executadas "com o propósito de assegurar liquidez e solvência ao Sistema Financeiro Nacional, de regular o funcionamento dos mercados de câmbio e de capitais e de resguardar os interesses de depositantes e investidores".
EMENDA CACCIOLA
Apesar de dirigir o benefício aos "agentes públicos", se a emenda 19 não for vetada pelo presidente Lula ela também pode beneficiar banqueiros envolvidos em escândalos financeiros. No meio jurídico e entre parlamentares o texto já foi batizado de "Emenda Cacciola". Ela pode ser usada na defesa de Salvatore Cacciola, ex-dono do banco Marka, condenado por crime contra o sistema financeiro e atualmente preso no Brasil.
A proposta de inclusão de uma emenda na MP 449, que trata da renegociação de dívidas tributárias com a União (leia mais nesta página), foi do deputado Sebastião Madeira (PSDB-MA). A emenda não foi acolhida na primeira votação da medida provisória, na Câmara dos Deputados, mas foi apoiada e aprovada por petistas e tucanos na votação do Senado - o Ministério da Fazenda apoiou a emenda.
Ontem, na segunda votação pelos deputados, só o PSOL se pronunciou contra a emenda 19, contrabandeada para dentro da medida provisória. Na votação simbólica, o líder do PSOL, deputado Ivan Valente (SP), disse que "em nome da adoção de medidas anticrise vão acabar com a fiscalização e a responsabilização do agente público". O deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) defendeu explicitamente a aprovação da emenda 19 na MP que será encaminhada à sanção presidencial.
POR TABELA
A emenda serve, de acordo com advogados ouvidos pelo Estado, perfeitamente ao caso Cacciola. O ex-dono do Banco Marka se beneficiou de informações privilegiadas passadas pelo ex-presidente do Banco Central Chico Lopes às vésperas da desvalorização do real, em 1999.
Para evitar a quebra do banco e uma suposta crise sistêmica, Cacciola conseguiu do Banco Central uma ajuda superior a R$ 1 bilhão. Por causa disso, o ex-presidente do BC foi acusado e condenado pela Justiça.
Com a aprovação da emenda pelo Congresso e a promulgação pelo presidente da República, Chico Lopes poderia pedir para ser enquadrado na nova regra. Argumentaria que beneficiou o Marka para garantir a solvência do sistema financeiro, como prevê a emenda.
Se tiver sucesso, Cacciola será por tabela beneficiado - se o agente que praticou o ato ilegal não pode ser condenado, quem se beneficiou dele também não. Cacciola, portanto, poderia pedir à Justiça o mesmo benefício, o que só dependeria da apreciação do juiz.
Na justificativa para sua proposta, o deputado Sebastião Madeira afirmou que a medida "tem por objetivo preservar a liberdade de atuação dos agentes públicos responsáveis pela execução de medidas excepcionais com vistas a assegurar a liquidez e solvência" do sistema financeiro.
"Isso porque não podem tais agentes, no exercício de suas relevantes funções em tempos de crise econômica e financeira, ficar tolhidos pelo constante risco de responder por eventual malogro das medidas por eles tomadas no cumprimento de seu dever legal de zelar pela estabilidade do sistema financeiro", afirma o deputado na proposta. Não poderiam ser beneficiados os agentes que agissem comprovadamente de má-fé.
(Reproduzido de Google Notas / Luis Nassif - Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo)
Acordo entre PT e PSDB dá poderes ao governo para defender bancos
Felipe Recondo e Denise Madueño
Um acordo costurado por líderes do PT e do PSDB permitiu a aprovação de uma emenda à Medida Provisória (MP) 449 que concede uma verdadeira anistia aos ministros de Estado, presidentes do Banco Central (BC) e demais funcionários públicos que estão sendo processados por tomar decisões em defesa da solvência dos bancos que o Ministério Público considerou crimes contra o sistema financeiro.
As equipes econômicas dos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) sempre se queixaram do "oportunismo" dos processos e do fato de eles criarem insegurança nos agentes públicos que tomam essas decisões, mas os críticos da emenda aprovada ontem avaliam que a redação final do texto criou um vale-tudo jurídico, funcionando, na prática, como uma carta branca para o governo defender os bancos e justificar toda e qualquer medida adotada.
A emenda diz que os "agentes públicos" não sofrerão nenhum tipo de punição desde que as "medidas excepcionais" tenham sido tomadas e executadas "com o propósito de assegurar liquidez e solvência ao Sistema Financeiro Nacional, de regular o funcionamento dos mercados de câmbio e de capitais e de resguardar os interesses de depositantes e investidores".
EMENDA CACCIOLA
Apesar de dirigir o benefício aos "agentes públicos", se a emenda 19 não for vetada pelo presidente Lula ela também pode beneficiar banqueiros envolvidos em escândalos financeiros. No meio jurídico e entre parlamentares o texto já foi batizado de "Emenda Cacciola". Ela pode ser usada na defesa de Salvatore Cacciola, ex-dono do banco Marka, condenado por crime contra o sistema financeiro e atualmente preso no Brasil.
A proposta de inclusão de uma emenda na MP 449, que trata da renegociação de dívidas tributárias com a União (leia mais nesta página), foi do deputado Sebastião Madeira (PSDB-MA). A emenda não foi acolhida na primeira votação da medida provisória, na Câmara dos Deputados, mas foi apoiada e aprovada por petistas e tucanos na votação do Senado - o Ministério da Fazenda apoiou a emenda.
Ontem, na segunda votação pelos deputados, só o PSOL se pronunciou contra a emenda 19, contrabandeada para dentro da medida provisória. Na votação simbólica, o líder do PSOL, deputado Ivan Valente (SP), disse que "em nome da adoção de medidas anticrise vão acabar com a fiscalização e a responsabilização do agente público". O deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) defendeu explicitamente a aprovação da emenda 19 na MP que será encaminhada à sanção presidencial.
POR TABELA
A emenda serve, de acordo com advogados ouvidos pelo Estado, perfeitamente ao caso Cacciola. O ex-dono do Banco Marka se beneficiou de informações privilegiadas passadas pelo ex-presidente do Banco Central Chico Lopes às vésperas da desvalorização do real, em 1999.
Para evitar a quebra do banco e uma suposta crise sistêmica, Cacciola conseguiu do Banco Central uma ajuda superior a R$ 1 bilhão. Por causa disso, o ex-presidente do BC foi acusado e condenado pela Justiça.
Com a aprovação da emenda pelo Congresso e a promulgação pelo presidente da República, Chico Lopes poderia pedir para ser enquadrado na nova regra. Argumentaria que beneficiou o Marka para garantir a solvência do sistema financeiro, como prevê a emenda.
Se tiver sucesso, Cacciola será por tabela beneficiado - se o agente que praticou o ato ilegal não pode ser condenado, quem se beneficiou dele também não. Cacciola, portanto, poderia pedir à Justiça o mesmo benefício, o que só dependeria da apreciação do juiz.
Na justificativa para sua proposta, o deputado Sebastião Madeira afirmou que a medida "tem por objetivo preservar a liberdade de atuação dos agentes públicos responsáveis pela execução de medidas excepcionais com vistas a assegurar a liquidez e solvência" do sistema financeiro.
"Isso porque não podem tais agentes, no exercício de suas relevantes funções em tempos de crise econômica e financeira, ficar tolhidos pelo constante risco de responder por eventual malogro das medidas por eles tomadas no cumprimento de seu dever legal de zelar pela estabilidade do sistema financeiro", afirma o deputado na proposta. Não poderiam ser beneficiados os agentes que agissem comprovadamente de má-fé.
(Reproduzido de Google Notas / Luis Nassif - Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo)
sábado, 9 de maio de 2009
A PULVERIZAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA
Texto de Luis Nassif
A influência da Internet não se dá apenas através de blogs ou novos portais - rompendo o controle da informação da chamada grande mídia.
***
Um dos aspectos mais instigantes desse novo modelo é o do estilhaçamento das formas de coordenação da chamada opinião pública. A partir dos anos 80, essa coordenação foi exercida especialmente pelos grandes veículos associados à chamada sociedade civil organizada, que emerge da resistência contra a ditadura.
Havia um primeiro círculo de influência, onde eram geradas as ideias centrais. Depois, desses círculos as ideias transbordavam para um segundo círculo, de jornais, rádios e noticiário de televisão. Foi batizado do chamado efeito pedra no lago: joga-se a pedra que gera ondas concêntricas, que se espalham até tomar o lago todo. Foi assim com a campanha do impeachment de Fernando Collor; e quase assim com o movimento que quase devorou FHC em seu segundo governo.
***
As eleições de 2006 mostraram que esse modelo estava puído. Apesar de uma mídia majoritariamente contrária à sua candidatura, Lula foi reeleito por ampla maioria. Mesmo assim, as eleições não bastariam para convalidar um novo modelo, devido ao carisma de Lula e aos erros do governo FHC com a crise de energia.
***
Há outros fatores que são mais significativos para comprovar as mudanças trazidas pela Internet.
Os agentes dessa mudança são, primeiro, os Blogs, que permitiram a recuperação da diversidade - que desapareceu da grande mídia. Na Blogosfera é possível encontrar de tudo, de Blogs de extrema-direita à extrema-esquerda.
Em 2006, no auge do tiroteio midiático, havia poucos blogs fazendo o contraponto e formas ainda não estruturadas de repercussão das análises.
Agora, não, montaram-se estruturas informais agilíssimas. Basta uma informação ou análise de maior impacto sair em determinado blogs para imediatamente ser repercutido por outros - levada por leitores que pulam de galho em galho. Mas esse fenômeno é mais restrito aos blogs políticos.
***
Há um segundo nível de formação de opinião que são as comunidades ou redes sociais - tipo Orkut ou listas de discussão. Nesses ambientes, a opinião é formada de modo quase endógeno. Parte relevante dos participantes fecham-se entre si, trocando opiniões e chegando a consensos.
***
Finalmente, há uma nova opinião pública surgindo nas classes C e D, que começa a ganhar corpo nos últimos anos. Com o barateamento dos computadores e com algum impulso federal - como a redução de impostos - há um processo gradativo de inclusão digital, uma enormidade de blogs temáticos, sites regionais, ligados a cidades, ONGs, movimentos sociais, ajudando a colocar mais combustível na diversidade da Internet.
***
É cedo para saber os desdobramentos desse movimento. Especialmente para saber de que maneira será o novo modelo político, sem essa articulação grupos políticos-grupos econômicos-grande mídia definindo a agenda política.
(Fonte: Luis Nassif Online / Portal Ig)
A influência da Internet não se dá apenas através de blogs ou novos portais - rompendo o controle da informação da chamada grande mídia.
***
Um dos aspectos mais instigantes desse novo modelo é o do estilhaçamento das formas de coordenação da chamada opinião pública. A partir dos anos 80, essa coordenação foi exercida especialmente pelos grandes veículos associados à chamada sociedade civil organizada, que emerge da resistência contra a ditadura.
Havia um primeiro círculo de influência, onde eram geradas as ideias centrais. Depois, desses círculos as ideias transbordavam para um segundo círculo, de jornais, rádios e noticiário de televisão. Foi batizado do chamado efeito pedra no lago: joga-se a pedra que gera ondas concêntricas, que se espalham até tomar o lago todo. Foi assim com a campanha do impeachment de Fernando Collor; e quase assim com o movimento que quase devorou FHC em seu segundo governo.
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As eleições de 2006 mostraram que esse modelo estava puído. Apesar de uma mídia majoritariamente contrária à sua candidatura, Lula foi reeleito por ampla maioria. Mesmo assim, as eleições não bastariam para convalidar um novo modelo, devido ao carisma de Lula e aos erros do governo FHC com a crise de energia.
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Há outros fatores que são mais significativos para comprovar as mudanças trazidas pela Internet.
Os agentes dessa mudança são, primeiro, os Blogs, que permitiram a recuperação da diversidade - que desapareceu da grande mídia. Na Blogosfera é possível encontrar de tudo, de Blogs de extrema-direita à extrema-esquerda.
Em 2006, no auge do tiroteio midiático, havia poucos blogs fazendo o contraponto e formas ainda não estruturadas de repercussão das análises.
Agora, não, montaram-se estruturas informais agilíssimas. Basta uma informação ou análise de maior impacto sair em determinado blogs para imediatamente ser repercutido por outros - levada por leitores que pulam de galho em galho. Mas esse fenômeno é mais restrito aos blogs políticos.
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Há um segundo nível de formação de opinião que são as comunidades ou redes sociais - tipo Orkut ou listas de discussão. Nesses ambientes, a opinião é formada de modo quase endógeno. Parte relevante dos participantes fecham-se entre si, trocando opiniões e chegando a consensos.
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Finalmente, há uma nova opinião pública surgindo nas classes C e D, que começa a ganhar corpo nos últimos anos. Com o barateamento dos computadores e com algum impulso federal - como a redução de impostos - há um processo gradativo de inclusão digital, uma enormidade de blogs temáticos, sites regionais, ligados a cidades, ONGs, movimentos sociais, ajudando a colocar mais combustível na diversidade da Internet.
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É cedo para saber os desdobramentos desse movimento. Especialmente para saber de que maneira será o novo modelo político, sem essa articulação grupos políticos-grupos econômicos-grande mídia definindo a agenda política.
(Fonte: Luis Nassif Online / Portal Ig)
quinta-feira, 7 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (9)
(... continuação / final)
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9 - Retomemos o fio do raciocínio. Na raiz da crise, apesar dos evidentes excessos do sistema financeiro, não está a falta de regulamentação. Estão ali, sim, os graves desequilíbrios macroeconômicos mundiais. O consumo dos países centrais, turbinado pelas novas formas de financiamento criadas por um sistema financeiro globalizado, foi a locomotiva do crescimento mundial. O esgotamento, nos países centrais, da capacidade de endividamento para consumir levou à crise, que paralisou a economia mundial no último trimestre de 2008.
Com a lição sobre 1929 bem compreendida, a política monetária americana tem inundado a economia com moeda e crédito, na tentativa de evitar uma depressão profunda. Ainda que essa política seja bem-sucedida, as economias dos Estados Unidos e dos demais países centrais, sobreendividados, deverão ficar estagnadas, sob a ameaça de deflação, por alguns anos. A assunção de dívidas privadas pelo setor público, para evitar o colapso do sistema financeiro, poderá ser bem-sucedida, mas ao custo de um grande aumento da dívida pública. Apesar do provável aumento expressivo dos gastos públicos, as economias centrais deverão continuar estagnadas enquanto durar o endividamento excessivo do setor privado. O período de digestão do excesso de dívidas será longo. Como, numa economia globalizada, as importações drenam o esforço doméstico de reativar a demanda interna através do gasto público e as exportações, ao contrário, contribuem para a recuperação da demanda interna, será grande a tentação, também nas economias centrais, para a adoção de uma postura protecionista.
No horizonte dos próximos anos, não há políticas domésticas capazes de revitalizar as economias centrais. O momento seria ideal para reverter o desequilíbrio das últimas décadas. Um agressivo programa de aumento do consumo e do investimento nos países periféricos seria a resposta mais adequada para a recuperação mundial. Além de contribuir para a recuperação das economias centrais, viria aliviar toda sorte de carências reprimidas na periferia. Ocorre que os países de economias periféricas, traumatizados pelas consequências de tentarem assumir o papel de agentes autônomos de sustentação da demanda mundial, adotaram uma atitude conservadora mercantilista, que não será facilmente modificada. Esse posicionamento foi-lhes estimulado - quando não imposto, mesmo em condições recessivas extremas - para obter credibilidade. A compreensível resistência a reverter a política conservadora dos países periféricos agravará o sentimento de irritação nos países centrais, o que deverá alimentar a tentação protecionista e nacionalista, sempre mais forte em momentos de crise.
A crise deixou claro o caráter anacrônico do quadro político e institucional mundial para lidar com a ameaça de uma recessão sincronizada. O quadro político não acompanhou a velocidade com que o mundo se globalizou. O arcabouço institucional não se adaptou à revolução tecnológica que levou à integração econômica. A crise dos anos 1930 terminou por levar, em 1944, à conferência de Bretton Woods, da qual saiu a tentativa de criar uma ordem monetária e instituições econômico-financeiras internacionais. Mais de seis décadas, muitas crises e algumas revisões depois, o sistema está definitivamente ultrapassado.
Não basta o esforço de dar fôlego às instituições criadas no âmbito do fim da Segunda Guerra por meio da incorporação dos novos atores da cena mundial. Coordenação internacional parece, hoje, a fórmula mágica. É preciso, simultaneamente, coordenar os esforços de políticas fiscais e monetárias, evitar a tentação protecionista, discutir uma regulação financeira harmônica e, sobretudo, reverter os desequilíbrios macroeconômicos das últimas décadas. Sem o arcabouço institucional adequado, a coordenação não pode almejar mais do que as declarações de boas intenções, como as da recente reunião do G-20 realizada em Londres.
A questão da moeda-reserva mundial foi recentemente retomada pelo presidente do banco central chinês. À primeira vista, o fato poderia ser entendido como provocação ou retaliação às reiteradas declarações das autoridades americanas de que a China deveria valorizar sua moeda. O artigo em que Zhou Xiaochuan expôs suas ideias é sensato . A moeda-reserva é o ponto crucial para que se possa progredir em direção a um mundo mais equilibrado. O desequilíbrio das últimas décadas se deve, por um lado, ao aumento irrestrito das despesas e do endividamento dos países centrais e, por outro, a uma postura nacional exportadora conservadora, voltada para a acumulação de reservas externas pelos países periféricos. A questão da credibilidade, que determina em última instância a assimetria a que estão submetidos os países emissores de moeda-reserva e os demais, está na raiz dos dois tipos de comportamento.
A moeda moderna não tem lastro físico, é meramente fiduciária. Está baseada na credibilidade do emissor. Credibilidade que depende, primordialmente, da percepção de solidez econômico-financeira do emissor e do seu sentido de responsabilidade. Responsabilidade para não abusar do privilégio outorgado. Mas a questão não se esgota aí. A credibilidade da moeda está baseada na percepção de solidez de todo um arcabouço econômico, mas, sobretudo, político, jurídico e institucional, do emissor. Uma moeda não ganha o direito de ser moeda-reserva, de ser utilizada para transações internacionais, sem a percepção da solidez econômica, política, jurídica e institucional de seu emissor. O dólar americano, por esses critérios, foi uma alternativa superior a qualquer outra desde Bretton Woods. Compreende-se o retumbante fracasso da tentativa de transformar a moeda artificial do FMI, o Direito Especial de Saque, em moeda mundial.
Nas últimas décadas, o persistente e crescente desequilíbrio das contas externas americanas provocou desconfiança quanto à posição tão dominante do dólar como moeda de denominação das transações internacionais. A magnitude dos déficits em conta-corrente dos Estados Unidos, que teria sido suficiente para provocar o colapso de qualquer outra moeda, já havia criado desconforto em relação ao dólar como moeda-reserva mundial. O aumento da aversão ao risco, com o eclodir da crise, demonstrou que ainda não havia alternativa. O dólar confirmou sua condição de refúgio e valorizou-se em relação a todas as moedas. É evidente, entretanto, o desconforto, a sensação de que este não é mais o porto seguro que um dia foi, mas sustentado apenas pelo hábito e pela falta de alternativas.
O mal-estar em relação ao dólar só se agravou com a agressiva política adotada pelo Fed para evitar o colapso do sistema financeiro. Aos Estados Unidos pode ser interessante, para evitar a depressão, adotar uma política monetária heterodoxa agressiva e inundar o mercado de dólares, mas sua credibilidade como emissor de moeda-reserva ficaria gravemente arranhada. A possibilidade de que, em algum momento à frente, o excesso de moeda e de dívida pública americana possa provocar inflação e brusca desvalorização do dólar é hoje uma preocupação que não pode ser descartada. Desde que não saiam do controle, tanto a inflação, quanto a desvalorização do dólar interessam aos Estados Unidos. Auxiliariam na redução do valor real das dívidas e estimulariam a economia. Compreende-se, assim, que a China, o maior detentor de títulos de dívida pública americana, esteja desconfortável e proponha a criação de uma moeda-reserva supranacional.
Embora inflação e desvalorização do dólar não pareçam ainda uma ameaça concreta num mundo à beira da deflação, não se deve subestimar seu impacto potencialmente desagregador, tanto sobre as relações comerciais e financeiras, quanto sobre políticas no mundo. A criação de uma verdadeira moeda-reserva supranacional seria a forma de minimizar o impacto de uma eventual desvalorização do dólar e de reverter a assimetria que resultou no desequilíbrio macroeconômico das últimas décadas. Antes da moeda mundial, entretanto, será preciso criar um emissor supranacional com credibilidade.
A globalização da economia e da cultura, fruto do progresso tecnológico, não parece ser um processo reversível sem um retrocesso do progresso da humanidade. Economia e cultura estão cada vez mais globalizadas, mas a política continua restrita aos limites geográficos dos estados nacionais. Os grandes temas são hoje mundiais. A homogeneização institucional, a criação de uma grande jurisdição supranacional, são o único caminho possível para lidar com os desafios de um mundo globalizado e submetido a limites a cada dia mais estreitos. Seria ingênuo imaginar que se avançará rapidamente na construção de um novo arcabouço jurídico-institucional supranacional. Sua necessidade já é evidente, mas o caminho é longo. A compreensão de que os desequilíbrios macroeconômicos que levaram à crise atual e que dificultam sua superação só poderão ser corrigidos num novo marco institucional global deve dar um sentido de urgência à agenda.
*André Lara Resende, economista, colaborou na formulação dos planos Cruzado e Real. Foi diretor do Banco Central e presidente do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso.
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O texto que hoje encerramos a apresentação foi extraído do sítio do Ministério das Relações Exteriores, em sua resenha de notícias. É um artigo escrito por André Lara Resende, dividido em nove partes, e publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
Tem um pouco de "economês", mas fácil de ser entendido.
O blog Fala Marisco! orienta que seja lido com profundo senso crítico, pois o artigo deixa transparecer muito do preconceito que a elite brasileira, retrógrada e entreguista, sempre impingiu ao povo brasileiro: eles, seres superiores, a nata da sociedade internacional, e nós outros mera ralé, que insiste em sobreviver e viver a atrapalhá-los.
Ministério das Relações Exteriores
Imprensa
Seleção diária de notícias
Jornal Valor Econômico
Título: Além da crise: desequilíbrio e credibilidade
Data: 24/04/2009
Crédito: André Lara Resende
A recuperação global depende de uma agenda de coordenação que abra espaço para a reversão de desajustes macroeconômicos e recomposição da confiança em países e moedas.
Valor Econômico
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9 - Retomemos o fio do raciocínio. Na raiz da crise, apesar dos evidentes excessos do sistema financeiro, não está a falta de regulamentação. Estão ali, sim, os graves desequilíbrios macroeconômicos mundiais. O consumo dos países centrais, turbinado pelas novas formas de financiamento criadas por um sistema financeiro globalizado, foi a locomotiva do crescimento mundial. O esgotamento, nos países centrais, da capacidade de endividamento para consumir levou à crise, que paralisou a economia mundial no último trimestre de 2008.
Com a lição sobre 1929 bem compreendida, a política monetária americana tem inundado a economia com moeda e crédito, na tentativa de evitar uma depressão profunda. Ainda que essa política seja bem-sucedida, as economias dos Estados Unidos e dos demais países centrais, sobreendividados, deverão ficar estagnadas, sob a ameaça de deflação, por alguns anos. A assunção de dívidas privadas pelo setor público, para evitar o colapso do sistema financeiro, poderá ser bem-sucedida, mas ao custo de um grande aumento da dívida pública. Apesar do provável aumento expressivo dos gastos públicos, as economias centrais deverão continuar estagnadas enquanto durar o endividamento excessivo do setor privado. O período de digestão do excesso de dívidas será longo. Como, numa economia globalizada, as importações drenam o esforço doméstico de reativar a demanda interna através do gasto público e as exportações, ao contrário, contribuem para a recuperação da demanda interna, será grande a tentação, também nas economias centrais, para a adoção de uma postura protecionista.
No horizonte dos próximos anos, não há políticas domésticas capazes de revitalizar as economias centrais. O momento seria ideal para reverter o desequilíbrio das últimas décadas. Um agressivo programa de aumento do consumo e do investimento nos países periféricos seria a resposta mais adequada para a recuperação mundial. Além de contribuir para a recuperação das economias centrais, viria aliviar toda sorte de carências reprimidas na periferia. Ocorre que os países de economias periféricas, traumatizados pelas consequências de tentarem assumir o papel de agentes autônomos de sustentação da demanda mundial, adotaram uma atitude conservadora mercantilista, que não será facilmente modificada. Esse posicionamento foi-lhes estimulado - quando não imposto, mesmo em condições recessivas extremas - para obter credibilidade. A compreensível resistência a reverter a política conservadora dos países periféricos agravará o sentimento de irritação nos países centrais, o que deverá alimentar a tentação protecionista e nacionalista, sempre mais forte em momentos de crise.
A crise deixou claro o caráter anacrônico do quadro político e institucional mundial para lidar com a ameaça de uma recessão sincronizada. O quadro político não acompanhou a velocidade com que o mundo se globalizou. O arcabouço institucional não se adaptou à revolução tecnológica que levou à integração econômica. A crise dos anos 1930 terminou por levar, em 1944, à conferência de Bretton Woods, da qual saiu a tentativa de criar uma ordem monetária e instituições econômico-financeiras internacionais. Mais de seis décadas, muitas crises e algumas revisões depois, o sistema está definitivamente ultrapassado.
Não basta o esforço de dar fôlego às instituições criadas no âmbito do fim da Segunda Guerra por meio da incorporação dos novos atores da cena mundial. Coordenação internacional parece, hoje, a fórmula mágica. É preciso, simultaneamente, coordenar os esforços de políticas fiscais e monetárias, evitar a tentação protecionista, discutir uma regulação financeira harmônica e, sobretudo, reverter os desequilíbrios macroeconômicos das últimas décadas. Sem o arcabouço institucional adequado, a coordenação não pode almejar mais do que as declarações de boas intenções, como as da recente reunião do G-20 realizada em Londres.
A questão da moeda-reserva mundial foi recentemente retomada pelo presidente do banco central chinês. À primeira vista, o fato poderia ser entendido como provocação ou retaliação às reiteradas declarações das autoridades americanas de que a China deveria valorizar sua moeda. O artigo em que Zhou Xiaochuan expôs suas ideias é sensato . A moeda-reserva é o ponto crucial para que se possa progredir em direção a um mundo mais equilibrado. O desequilíbrio das últimas décadas se deve, por um lado, ao aumento irrestrito das despesas e do endividamento dos países centrais e, por outro, a uma postura nacional exportadora conservadora, voltada para a acumulação de reservas externas pelos países periféricos. A questão da credibilidade, que determina em última instância a assimetria a que estão submetidos os países emissores de moeda-reserva e os demais, está na raiz dos dois tipos de comportamento.
A moeda moderna não tem lastro físico, é meramente fiduciária. Está baseada na credibilidade do emissor. Credibilidade que depende, primordialmente, da percepção de solidez econômico-financeira do emissor e do seu sentido de responsabilidade. Responsabilidade para não abusar do privilégio outorgado. Mas a questão não se esgota aí. A credibilidade da moeda está baseada na percepção de solidez de todo um arcabouço econômico, mas, sobretudo, político, jurídico e institucional, do emissor. Uma moeda não ganha o direito de ser moeda-reserva, de ser utilizada para transações internacionais, sem a percepção da solidez econômica, política, jurídica e institucional de seu emissor. O dólar americano, por esses critérios, foi uma alternativa superior a qualquer outra desde Bretton Woods. Compreende-se o retumbante fracasso da tentativa de transformar a moeda artificial do FMI, o Direito Especial de Saque, em moeda mundial.
Nas últimas décadas, o persistente e crescente desequilíbrio das contas externas americanas provocou desconfiança quanto à posição tão dominante do dólar como moeda de denominação das transações internacionais. A magnitude dos déficits em conta-corrente dos Estados Unidos, que teria sido suficiente para provocar o colapso de qualquer outra moeda, já havia criado desconforto em relação ao dólar como moeda-reserva mundial. O aumento da aversão ao risco, com o eclodir da crise, demonstrou que ainda não havia alternativa. O dólar confirmou sua condição de refúgio e valorizou-se em relação a todas as moedas. É evidente, entretanto, o desconforto, a sensação de que este não é mais o porto seguro que um dia foi, mas sustentado apenas pelo hábito e pela falta de alternativas.
O mal-estar em relação ao dólar só se agravou com a agressiva política adotada pelo Fed para evitar o colapso do sistema financeiro. Aos Estados Unidos pode ser interessante, para evitar a depressão, adotar uma política monetária heterodoxa agressiva e inundar o mercado de dólares, mas sua credibilidade como emissor de moeda-reserva ficaria gravemente arranhada. A possibilidade de que, em algum momento à frente, o excesso de moeda e de dívida pública americana possa provocar inflação e brusca desvalorização do dólar é hoje uma preocupação que não pode ser descartada. Desde que não saiam do controle, tanto a inflação, quanto a desvalorização do dólar interessam aos Estados Unidos. Auxiliariam na redução do valor real das dívidas e estimulariam a economia. Compreende-se, assim, que a China, o maior detentor de títulos de dívida pública americana, esteja desconfortável e proponha a criação de uma moeda-reserva supranacional.
Embora inflação e desvalorização do dólar não pareçam ainda uma ameaça concreta num mundo à beira da deflação, não se deve subestimar seu impacto potencialmente desagregador, tanto sobre as relações comerciais e financeiras, quanto sobre políticas no mundo. A criação de uma verdadeira moeda-reserva supranacional seria a forma de minimizar o impacto de uma eventual desvalorização do dólar e de reverter a assimetria que resultou no desequilíbrio macroeconômico das últimas décadas. Antes da moeda mundial, entretanto, será preciso criar um emissor supranacional com credibilidade.
A globalização da economia e da cultura, fruto do progresso tecnológico, não parece ser um processo reversível sem um retrocesso do progresso da humanidade. Economia e cultura estão cada vez mais globalizadas, mas a política continua restrita aos limites geográficos dos estados nacionais. Os grandes temas são hoje mundiais. A homogeneização institucional, a criação de uma grande jurisdição supranacional, são o único caminho possível para lidar com os desafios de um mundo globalizado e submetido a limites a cada dia mais estreitos. Seria ingênuo imaginar que se avançará rapidamente na construção de um novo arcabouço jurídico-institucional supranacional. Sua necessidade já é evidente, mas o caminho é longo. A compreensão de que os desequilíbrios macroeconômicos que levaram à crise atual e que dificultam sua superação só poderão ser corrigidos num novo marco institucional global deve dar um sentido de urgência à agenda.
*André Lara Resende, economista, colaborou na formulação dos planos Cruzado e Real. Foi diretor do Banco Central e presidente do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso.
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O texto que hoje encerramos a apresentação foi extraído do sítio do Ministério das Relações Exteriores, em sua resenha de notícias. É um artigo escrito por André Lara Resende, dividido em nove partes, e publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
Tem um pouco de "economês", mas fácil de ser entendido.
O blog Fala Marisco! orienta que seja lido com profundo senso crítico, pois o artigo deixa transparecer muito do preconceito que a elite brasileira, retrógrada e entreguista, sempre impingiu ao povo brasileiro: eles, seres superiores, a nata da sociedade internacional, e nós outros mera ralé, que insiste em sobreviver e viver a atrapalhá-los.
Ministério das Relações Exteriores
Imprensa
Seleção diária de notícias
Jornal Valor Econômico
Título: Além da crise: desequilíbrio e credibilidade
Data: 24/04/2009
Crédito: André Lara Resende
A recuperação global depende de uma agenda de coordenação que abra espaço para a reversão de desajustes macroeconômicos e recomposição da confiança em países e moedas.
Valor Econômico
quarta-feira, 6 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (8)
(... continuação)
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8 - Tudo indica que os Estados Unidos terão pela frente um longo período de estagnação. A opção por uma política monetária agressiva e heterodoxamente expansiva deverá evitar a repetição do colapso de 1929, quando o PIB chegou a cair perto de 50% e o desemprego aberto superou os 30%. Em contrapartida, o excesso de dívida do setor privado deverá levar anos para ser digerido. Como o excesso de dívida é algo relativo à renda e ao produto interno, quanto menos crescer a economia, mais longo será o período de digestão. Ou, inversamente, quanto maior for a demanda, maior será o crescimento e mais rápida a digestão do excesso de dívida. Esta é a explicação para o aparente contrassenso de estimular o consumo numa sociedade que enfrenta uma crise monumental, justamente por consumir e se endividar em excesso. Um chargista captou bem a contradição ao descrever o estado das coisas: país viciado em bolhas especulativas busca desesperadamente nova bolha para investir.
A dúvida quanto à atitude correta, nas atuais circunstâncias, entre gastar ou poupar, parece confundir a todos. Tudo indica que o ideal seria poupar, mas desde que os outros gastem. E quem são "os outros" numa perspectiva macroeconômica? A resposta vem de uma identidade elementar da contabilidade nacional: os outros são, primeiro, os estrangeiros que compram nossas exportações e, segundo, o governo que, ao gastar, saca contra as gerações futuras.
Keynes demonstrou que, mesmo que o governo financiasse o aumento dos gastos com aumento correspondente dos impostos, o efeito líquido seria um aumento da demanda agregada, por que os impostos arrecadados vêm parcialmente da poupança. Entretanto, quando se fala em aumento do gasto público nas atuais circunstâncias, não se trata, absolutamente, de financiá-los com aumento dos impostos, mas sim, e integralmente, através do aumento da dívida pública. Fica claro que, quanto mais o estímulo à demanda interna vier das exportações, menor a conta a ser dependurada nas gerações futuras. Enquanto as exportações são uma contribuição externa à recuperação da demanda, as importações são um dreno à demanda interna. Numa economia aberta, parte do esforço de aumentar os gastos públicos se esvai via importações. A eterna tentação protecionista encontra um apelo renovado.
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8 - Tudo indica que os Estados Unidos terão pela frente um longo período de estagnação. A opção por uma política monetária agressiva e heterodoxamente expansiva deverá evitar a repetição do colapso de 1929, quando o PIB chegou a cair perto de 50% e o desemprego aberto superou os 30%. Em contrapartida, o excesso de dívida do setor privado deverá levar anos para ser digerido. Como o excesso de dívida é algo relativo à renda e ao produto interno, quanto menos crescer a economia, mais longo será o período de digestão. Ou, inversamente, quanto maior for a demanda, maior será o crescimento e mais rápida a digestão do excesso de dívida. Esta é a explicação para o aparente contrassenso de estimular o consumo numa sociedade que enfrenta uma crise monumental, justamente por consumir e se endividar em excesso. Um chargista captou bem a contradição ao descrever o estado das coisas: país viciado em bolhas especulativas busca desesperadamente nova bolha para investir.
A dúvida quanto à atitude correta, nas atuais circunstâncias, entre gastar ou poupar, parece confundir a todos. Tudo indica que o ideal seria poupar, mas desde que os outros gastem. E quem são "os outros" numa perspectiva macroeconômica? A resposta vem de uma identidade elementar da contabilidade nacional: os outros são, primeiro, os estrangeiros que compram nossas exportações e, segundo, o governo que, ao gastar, saca contra as gerações futuras.
Keynes demonstrou que, mesmo que o governo financiasse o aumento dos gastos com aumento correspondente dos impostos, o efeito líquido seria um aumento da demanda agregada, por que os impostos arrecadados vêm parcialmente da poupança. Entretanto, quando se fala em aumento do gasto público nas atuais circunstâncias, não se trata, absolutamente, de financiá-los com aumento dos impostos, mas sim, e integralmente, através do aumento da dívida pública. Fica claro que, quanto mais o estímulo à demanda interna vier das exportações, menor a conta a ser dependurada nas gerações futuras. Enquanto as exportações são uma contribuição externa à recuperação da demanda, as importações são um dreno à demanda interna. Numa economia aberta, parte do esforço de aumentar os gastos públicos se esvai via importações. A eterna tentação protecionista encontra um apelo renovado.
terça-feira, 5 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (7)
(... continuação)
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7 - Há uma simetria entre a questão da inflação e a questão da deflação. Antes, é preciso especificar que a inflação que quero contrapor à deflação não é a pequena inflação, sempre presente numa economia saudável, nem mesmo um surto inflacionário mais forte, por pressões circunstanciais, que pode levar os índices anuais acima dos dois dígitos. O quadro inflacionário ao qual me refiro é o das grandes inflações crônicas, como o que caracterizou a economia brasileira desde a década de 1970 até a estabilização, com o Real, nos anos 1990. Assim como o quadro inflacionário crônico é essencialmente um problema de endividamento excessivo do setor público, o quadro deflacionário é essencialmente um problema de endividamento excessivo do setor privado.
A inflação crônica decorre de uma incompatibilidade intertemporal da restrição orçamentária do governo, independente da função de taxação que vier a ser adotada. Trata-se do caso em que o setor público abusou de tal forma da sua capacidade de extrair recursos, seja das gerações presentes - através de tributos ou do chamado "imposto inflacionário" - seja das gerações futuras, através do endividamento, que sua credibilidade é finalmente exaurida. A dívida pública passa a ser percebida como impagável e a moeda nacional é substituída por moedas paralelas. O fim das grandes inflações passa necessariamente pela redução do endividamento público, ou pela socialmente onerosa hiperinflação, ou, alternativamente, por alguma forma de "default". No caso do Brasil, o Plano Collor, apesar de fracassado, revelou-se uma forma barroca e complexa, ainda mais agressiva do que um "default" negociado, de reduzir a dívida pública. Foi, entretanto, condição para que a sofisticada desindexação do Plano Real viesse a ter sucesso.
A deflação, por sua vez, decorre de uma incompatibilidade intertemporal da restrição orçamentária do setor privado. A partir de determinado ponto de endividamento, o setor privado só se percebe como capaz de carregar sua dívida enquanto acredita na contínua alta dos preços de seus ativos. Como a alta dos preços dos ativos é alimentada pelo próprio endividamento, a partir de certo ponto, o processo adquire características de uma "bicicleta especulativa". No momento em que se interrompe a alta dos preços dos ativos, o setor privado se descobre subitamente insolvente. As bolhas especulativas imobiliárias, sobretudo residenciais, por basearem-se nos ativos de propriedade mais abrangente, são as que mais estragos causam quando se exaurem. Diante da ameaça de deflação, a opção por não dar crédito público a um setor privado insolvente - não havendo, portanto, uma política monetária agressivamente contracíclica - é o equivalente simétrico, no quadro da inflação crônica, a permitir que se chegue à hiperinflação aberta. Essa foi a opção feita em 1929, com a insistência no equilíbrio fiscal e na manutenção do padrão ouro. O resultado, assim como na hiperinflação aberta, é "zerar a pedra", através da quebra generalizada. Não é preciso destacar os custos absurdos da opção de resolver o endividamento excessivo - seja público, via hiperinflação, seja privado, via depressão - através de uma política de terra arrasada.
A experiência de 1929 ensinou que o apego à ortodoxia, a recusa de financiar com recursos públicos uma economia insolvente, é um equívoco a não ser repetido. Infelizmente, sabe-se desde Keynes, a política monetária expansiva não é capaz de estimular a economia nessas circunstâncias. É capaz de evitar seu colapso, aprendeu-se com os estudos posteriores de Milton Friedman e Anna Schwartz , mas, ao dar sobrevida a uma economia atolada em dívidas, torna ineficaz também a política fiscal, como já havia observado Irving Fisher. Enquanto o endividamento não for digerido, tanto a política monetária como a política fiscal são ineficazes. As alternativas não são atraentes: deixar a economia desmoronar, para que as dívidas desapareçam e em seguida usar a política fiscal para reanimá-la, ou inundar a economia insolvente com crédito público, para evitar o colapso, mas ficar sem instrumentos para tirá-la de uma prolongada letargia. Um fim horroroso ou um horror sem fim.
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7 - Há uma simetria entre a questão da inflação e a questão da deflação. Antes, é preciso especificar que a inflação que quero contrapor à deflação não é a pequena inflação, sempre presente numa economia saudável, nem mesmo um surto inflacionário mais forte, por pressões circunstanciais, que pode levar os índices anuais acima dos dois dígitos. O quadro inflacionário ao qual me refiro é o das grandes inflações crônicas, como o que caracterizou a economia brasileira desde a década de 1970 até a estabilização, com o Real, nos anos 1990. Assim como o quadro inflacionário crônico é essencialmente um problema de endividamento excessivo do setor público, o quadro deflacionário é essencialmente um problema de endividamento excessivo do setor privado.
A inflação crônica decorre de uma incompatibilidade intertemporal da restrição orçamentária do governo, independente da função de taxação que vier a ser adotada. Trata-se do caso em que o setor público abusou de tal forma da sua capacidade de extrair recursos, seja das gerações presentes - através de tributos ou do chamado "imposto inflacionário" - seja das gerações futuras, através do endividamento, que sua credibilidade é finalmente exaurida. A dívida pública passa a ser percebida como impagável e a moeda nacional é substituída por moedas paralelas. O fim das grandes inflações passa necessariamente pela redução do endividamento público, ou pela socialmente onerosa hiperinflação, ou, alternativamente, por alguma forma de "default". No caso do Brasil, o Plano Collor, apesar de fracassado, revelou-se uma forma barroca e complexa, ainda mais agressiva do que um "default" negociado, de reduzir a dívida pública. Foi, entretanto, condição para que a sofisticada desindexação do Plano Real viesse a ter sucesso.
A deflação, por sua vez, decorre de uma incompatibilidade intertemporal da restrição orçamentária do setor privado. A partir de determinado ponto de endividamento, o setor privado só se percebe como capaz de carregar sua dívida enquanto acredita na contínua alta dos preços de seus ativos. Como a alta dos preços dos ativos é alimentada pelo próprio endividamento, a partir de certo ponto, o processo adquire características de uma "bicicleta especulativa". No momento em que se interrompe a alta dos preços dos ativos, o setor privado se descobre subitamente insolvente. As bolhas especulativas imobiliárias, sobretudo residenciais, por basearem-se nos ativos de propriedade mais abrangente, são as que mais estragos causam quando se exaurem. Diante da ameaça de deflação, a opção por não dar crédito público a um setor privado insolvente - não havendo, portanto, uma política monetária agressivamente contracíclica - é o equivalente simétrico, no quadro da inflação crônica, a permitir que se chegue à hiperinflação aberta. Essa foi a opção feita em 1929, com a insistência no equilíbrio fiscal e na manutenção do padrão ouro. O resultado, assim como na hiperinflação aberta, é "zerar a pedra", através da quebra generalizada. Não é preciso destacar os custos absurdos da opção de resolver o endividamento excessivo - seja público, via hiperinflação, seja privado, via depressão - através de uma política de terra arrasada.
A experiência de 1929 ensinou que o apego à ortodoxia, a recusa de financiar com recursos públicos uma economia insolvente, é um equívoco a não ser repetido. Infelizmente, sabe-se desde Keynes, a política monetária expansiva não é capaz de estimular a economia nessas circunstâncias. É capaz de evitar seu colapso, aprendeu-se com os estudos posteriores de Milton Friedman e Anna Schwartz , mas, ao dar sobrevida a uma economia atolada em dívidas, torna ineficaz também a política fiscal, como já havia observado Irving Fisher. Enquanto o endividamento não for digerido, tanto a política monetária como a política fiscal são ineficazes. As alternativas não são atraentes: deixar a economia desmoronar, para que as dívidas desapareçam e em seguida usar a política fiscal para reanimá-la, ou inundar a economia insolvente com crédito público, para evitar o colapso, mas ficar sem instrumentos para tirá-la de uma prolongada letargia. Um fim horroroso ou um horror sem fim.
segunda-feira, 4 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (6)
(... continuação)
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6 - Para reativar a economia estagnada, após uma grande recessão, recorre-se à receita de John Maynard Keynes, exposta na sua "Teoria Geral da Moeda e do Emprego", de 1936. O trabalho seminal de Keynes, posteriormente sistematizado, é a base da moderna macroeconomia, sobre a qual se fundamenta até hoje, embora profundamente revista, a formulação de políticas monetárias e fiscais. Keynes argumenta que, em períodos de recessão e deflação, a política monetária pode se tornar incapaz de estimular a demanda agregada. Só a política fiscal, por meio do aumento dos gastos e dos investimentos públicos, poderia fazer a economia estagnada "pegar no tranco".
A política fiscal keynesiana é a que expande os gastos públicos, sobretudo os de investimentos, para criar demanda agregada e reacender, por meio do chamado multiplicador keynesiano, a demanda privada. Quando o Fed expande seu ativo adquirindo créditos problemáticos, embora haja um componente fiscal embutido na provável elevação da dívida pública, trata-se ainda de uma ação de política monetária. Política monetária não convencional, com provável impacto direto na dívida pública, decorrente da incapacidade de recuperar o valor integral desses créditos, mas, ainda assim, política monetária. Embora essa não seja a política monetária clássica, à qual Keynes se referia, ela também é incapaz de estimular a economia nas atuais circunstâncias. A razão é simples: ainda que seja executada até o ponto em que o sistema financeiro, menos alavancado e recapitalizado, esteja disposto a voltar a conceder empréstimos, não haverá tomadores. Enquanto o setor privado não financeiro estiver excessivamente endividado, preocupado em poupar para reduzir seu endividamento, os únicos possíveis tomadores de novos empréstimos serão justamente os incapazes de amortizar suas dívidas. Só estará disposto a tomar novos empréstimos quem não é capaz de honrar seus compromissos anteriores. A desalavancagem apenas do setor financeiro não resolve o problema. É preciso que o setor privado não financeiro, as famílias e as empresas, também consiga reduzir sua alavancagem para que o sistema volte a funcionar. Para isso, não basta haver quem se disponha a dar crédito, mas também quem seja digno de crédito e se disponha a tomar crédito.
Há uma diferença fundamental entre as condições a partir das quais Keynes formulou suas teses e as condições atuais. A "Teoria Geral" é de 1936. Antes disso, a partir de 1932, esboços da tese ali formulada aparecem nos ensaios de Keynes . A partir de 1932, a economia americana estava ainda prostrada em profunda depressão, mas, como se sabe hoje, o excesso de endividamento do setor privado tinha sido eliminado pelo colapso do sistema financeiro, como consequência, em grande parte, de equívocos na condução das políticas monetária e fiscal. A quebra generalizada dos bancos e das empresas resolveu o problema do endividamento excessivo. Bancos, empresas e famílias estavam quebrados, mas sem dívidas. Os custos foram dramáticos, mas o excesso de endividamento desapareceu.
O fato de não se repetirem hoje os erros cometidos em 1929 leva a uma situação muito diferente daquela em que a economia americana se encontrava em 1932. Se, por um lado, não se permitiu que o sistema financeiro fosse à bancarrota, que a economia se desorganizasse por completo e que o desemprego aberto atingisse números perto de 30%, como ocorreu na Grande Depressão, por outro, a economia continua hoje, há quase dois anos do início da crise, completamente soterrada em dívidas impagáveis. Enquanto seu endividamento for percebido como excessivo, o setor privado - empresas e famílias - estará dedicado a reduzir despesas e a aumentar a poupança, até que seus compromissos tenham voltado a um nível aceitável. No início da década de 1930 não havia demanda por que não havia atividade econômica e não havia renda. Hoje, não há demanda por que a necessidade de reduzir o excesso de endividamento exige que se poupe uma parte substancial da renda. São situações diferentes.
O que ocorre hoje nos Estados Unidos é mais parecido com o que ocorreu no Japão após a crise imobiliária e bancária do início dos anos 1990. A intervenção do governo impediu que os bancos quebrassem, as políticas monetária e fiscal tornaram-se agressivamente expansionistas, os juros foram para níveis próximos de zero, e ainda assim a economia se manteve praticamente estagnada. A economia prostrada, mas sem dívida, pode dar início a uma recuperação através do aumento das despesas públicas, que funcionam como um motor de arranque. Uma vez iniciada a marcha, a renda gerada não é mais primordialmente poupada para reduzir o endividamento, mas é gasta para recompor o padrão de vida das famílias, o que cria demanda e dá início ao círculo virtuoso da recuperação. Já numa economia paralisada pelo excesso de dívida do setor privado, como foi o caso do Japão desde os anos 1990, e agora acontece nos Estados Unidos, nem a política monetária, nem a política fiscal são capazes de reativar a economia. Grande parte da renda gerada pelo aumento do gasto público é poupada pelo setor privado para reduzir seu endividamento. Interrompe-se, assim, o círculo virtuoso do multiplicador keynesiano de dispêndios.
A melhor análise de situações como essa, da economia em deflação, paralisada pelo excesso de dívida, não é de Keynes, mais voltada para como reativar uma economia em que as dívidas foram dizimadas pela depressão, mas do economista americano Irving Fisher (1867-1947). Keynes, ao menos o da "Teoria Geral", é o economista do período pós-depressão. Fisher é o grande analista dos períodos depressivos em si, quando a questão do endividamento excessivo e da deflação é dominante .
Fisher estudou as depressões de 1837 e 1873, assim como a de 1929 a 1933, e desenvolveu sua tese de que nem a política monetária, nem a política fiscal são capazes de estimular a economia enquanto perdurar uma situação de endividamento excessivo. Para se ter uma ideia relativa da magnitude do problema do endividamento, o total da dívida americana em 1929 era de 300% do PIB e chegou a quase 360% no fim do ano passado, depois de ficar entre 130% e 160%, desde o início dos anos 1950 até o final da década de 1980. Ben Bernanke, o atual presidente do Fed, ele próprio um acadêmico com trabalhos importantes sobre os períodos de depressão, demonstrou ter consciência da dificuldade de sair do atoleiro deflacionário, quando há alguns anos, em visita ao Japão, afirmou que a melhor maneira de sair da deflação é não entrar nela .
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6 - Para reativar a economia estagnada, após uma grande recessão, recorre-se à receita de John Maynard Keynes, exposta na sua "Teoria Geral da Moeda e do Emprego", de 1936. O trabalho seminal de Keynes, posteriormente sistematizado, é a base da moderna macroeconomia, sobre a qual se fundamenta até hoje, embora profundamente revista, a formulação de políticas monetárias e fiscais. Keynes argumenta que, em períodos de recessão e deflação, a política monetária pode se tornar incapaz de estimular a demanda agregada. Só a política fiscal, por meio do aumento dos gastos e dos investimentos públicos, poderia fazer a economia estagnada "pegar no tranco".
A política fiscal keynesiana é a que expande os gastos públicos, sobretudo os de investimentos, para criar demanda agregada e reacender, por meio do chamado multiplicador keynesiano, a demanda privada. Quando o Fed expande seu ativo adquirindo créditos problemáticos, embora haja um componente fiscal embutido na provável elevação da dívida pública, trata-se ainda de uma ação de política monetária. Política monetária não convencional, com provável impacto direto na dívida pública, decorrente da incapacidade de recuperar o valor integral desses créditos, mas, ainda assim, política monetária. Embora essa não seja a política monetária clássica, à qual Keynes se referia, ela também é incapaz de estimular a economia nas atuais circunstâncias. A razão é simples: ainda que seja executada até o ponto em que o sistema financeiro, menos alavancado e recapitalizado, esteja disposto a voltar a conceder empréstimos, não haverá tomadores. Enquanto o setor privado não financeiro estiver excessivamente endividado, preocupado em poupar para reduzir seu endividamento, os únicos possíveis tomadores de novos empréstimos serão justamente os incapazes de amortizar suas dívidas. Só estará disposto a tomar novos empréstimos quem não é capaz de honrar seus compromissos anteriores. A desalavancagem apenas do setor financeiro não resolve o problema. É preciso que o setor privado não financeiro, as famílias e as empresas, também consiga reduzir sua alavancagem para que o sistema volte a funcionar. Para isso, não basta haver quem se disponha a dar crédito, mas também quem seja digno de crédito e se disponha a tomar crédito.
Há uma diferença fundamental entre as condições a partir das quais Keynes formulou suas teses e as condições atuais. A "Teoria Geral" é de 1936. Antes disso, a partir de 1932, esboços da tese ali formulada aparecem nos ensaios de Keynes . A partir de 1932, a economia americana estava ainda prostrada em profunda depressão, mas, como se sabe hoje, o excesso de endividamento do setor privado tinha sido eliminado pelo colapso do sistema financeiro, como consequência, em grande parte, de equívocos na condução das políticas monetária e fiscal. A quebra generalizada dos bancos e das empresas resolveu o problema do endividamento excessivo. Bancos, empresas e famílias estavam quebrados, mas sem dívidas. Os custos foram dramáticos, mas o excesso de endividamento desapareceu.
O fato de não se repetirem hoje os erros cometidos em 1929 leva a uma situação muito diferente daquela em que a economia americana se encontrava em 1932. Se, por um lado, não se permitiu que o sistema financeiro fosse à bancarrota, que a economia se desorganizasse por completo e que o desemprego aberto atingisse números perto de 30%, como ocorreu na Grande Depressão, por outro, a economia continua hoje, há quase dois anos do início da crise, completamente soterrada em dívidas impagáveis. Enquanto seu endividamento for percebido como excessivo, o setor privado - empresas e famílias - estará dedicado a reduzir despesas e a aumentar a poupança, até que seus compromissos tenham voltado a um nível aceitável. No início da década de 1930 não havia demanda por que não havia atividade econômica e não havia renda. Hoje, não há demanda por que a necessidade de reduzir o excesso de endividamento exige que se poupe uma parte substancial da renda. São situações diferentes.
O que ocorre hoje nos Estados Unidos é mais parecido com o que ocorreu no Japão após a crise imobiliária e bancária do início dos anos 1990. A intervenção do governo impediu que os bancos quebrassem, as políticas monetária e fiscal tornaram-se agressivamente expansionistas, os juros foram para níveis próximos de zero, e ainda assim a economia se manteve praticamente estagnada. A economia prostrada, mas sem dívida, pode dar início a uma recuperação através do aumento das despesas públicas, que funcionam como um motor de arranque. Uma vez iniciada a marcha, a renda gerada não é mais primordialmente poupada para reduzir o endividamento, mas é gasta para recompor o padrão de vida das famílias, o que cria demanda e dá início ao círculo virtuoso da recuperação. Já numa economia paralisada pelo excesso de dívida do setor privado, como foi o caso do Japão desde os anos 1990, e agora acontece nos Estados Unidos, nem a política monetária, nem a política fiscal são capazes de reativar a economia. Grande parte da renda gerada pelo aumento do gasto público é poupada pelo setor privado para reduzir seu endividamento. Interrompe-se, assim, o círculo virtuoso do multiplicador keynesiano de dispêndios.
A melhor análise de situações como essa, da economia em deflação, paralisada pelo excesso de dívida, não é de Keynes, mais voltada para como reativar uma economia em que as dívidas foram dizimadas pela depressão, mas do economista americano Irving Fisher (1867-1947). Keynes, ao menos o da "Teoria Geral", é o economista do período pós-depressão. Fisher é o grande analista dos períodos depressivos em si, quando a questão do endividamento excessivo e da deflação é dominante .
Fisher estudou as depressões de 1837 e 1873, assim como a de 1929 a 1933, e desenvolveu sua tese de que nem a política monetária, nem a política fiscal são capazes de estimular a economia enquanto perdurar uma situação de endividamento excessivo. Para se ter uma ideia relativa da magnitude do problema do endividamento, o total da dívida americana em 1929 era de 300% do PIB e chegou a quase 360% no fim do ano passado, depois de ficar entre 130% e 160%, desde o início dos anos 1950 até o final da década de 1980. Ben Bernanke, o atual presidente do Fed, ele próprio um acadêmico com trabalhos importantes sobre os períodos de depressão, demonstrou ter consciência da dificuldade de sair do atoleiro deflacionário, quando há alguns anos, em visita ao Japão, afirmou que a melhor maneira de sair da deflação é não entrar nela .
domingo, 3 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (5)
(... continuação)
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5 - Mais de um ano e meio depois do primeiro sinal de que o mercado financeiro internacional tinha problemas sérios, dado em agosto de 2007, não há mais dúvida quanto à profundidade e ao caráter global da crise - a mais séria desde a Grande Depressão de 1929, ouve-se repetidamente. Certificar-se de que os erros cometidos em 1929 não se repitam parece pautar a reação da política econômica americana. Onde estamos na crise e o que esperar da reação de política econômica posta em prática até este momento?
O fator deflagrador da crise foi o esgotamento do ciclo expansionista do mercado imobiliário residencial nos Estados Unidos. Como ficou evidente depois, a bolha do mercado imobiliário americano era apenas o aspecto mais crítico do esgotamento de um ciclo maior: o do crescimento acelerado do consumo nos países centrais, financiado pelo endividamento crescente do setor privado. Exauriu-se o ciclo de consumo com endividamento, levado a níveis extremos pela engenhosidade de um sistema financeiro globalizado. Após alguns meses de colapso dos preços dos ativos, o resultado não demorou a aparecer: o sistema financeiro estava insolvente e os consumidores, excessivamente endividados.
A reação de política econômica, num primeiro momento, sobretudo nos Estados Unidos, mas em seguida também na Europa, foi garantir que os erros de 1929 não fossem repetidos. Preocupados em garantir a liquidez do sistema financeiro a qualquer preço, os bancos centrais passaram a emitir moeda, das formas mais convencionais às mais heterodoxas. O objetivo era interromper a queda brusca dos preços dos ativos, imobiliários e mobiliários, antes que o sistema financeiro se tornasse insolvente, ou seja, que tivesse seu capital próprio tragado pela desvalorização de seus ativos.
A agressividade do Fed, a partir da quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, não foi suficiente para reverter o quadro. A velocidade da deterioração do valor dos ativos nas carteiras dos bancos continuou superior à capacidade das agências governamentais de simultaneamente capitalizá-los com recursos públicos e assumir seus créditos problemáticos. A extraordinária injeção de liquidez no sistema financeiro, desde o início de 2008 até abril de 2009, representou um aumento do ativo do Fed de quase US$ 1,2 trilhão, ou seja, aproximadamente 10% do PIB americano. A aquisição de ativos financeiros e o aumento do capital dos bancos, financiados pela expansão do ativo do Fed, é um processo de transformação de dívidas privadas em dívidas públicas, pois grande parte dos créditos adquiridos é irrecuperável. O objetivo de um comprometimento de recursos públicos dessa magnitude é fazer com que o sistema volte a emprestar - o que ainda não aconteceu e, muito provavelmente, não acontecerá enquanto o setor privado estiver sobre-endividado.
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5 - Mais de um ano e meio depois do primeiro sinal de que o mercado financeiro internacional tinha problemas sérios, dado em agosto de 2007, não há mais dúvida quanto à profundidade e ao caráter global da crise - a mais séria desde a Grande Depressão de 1929, ouve-se repetidamente. Certificar-se de que os erros cometidos em 1929 não se repitam parece pautar a reação da política econômica americana. Onde estamos na crise e o que esperar da reação de política econômica posta em prática até este momento?
O fator deflagrador da crise foi o esgotamento do ciclo expansionista do mercado imobiliário residencial nos Estados Unidos. Como ficou evidente depois, a bolha do mercado imobiliário americano era apenas o aspecto mais crítico do esgotamento de um ciclo maior: o do crescimento acelerado do consumo nos países centrais, financiado pelo endividamento crescente do setor privado. Exauriu-se o ciclo de consumo com endividamento, levado a níveis extremos pela engenhosidade de um sistema financeiro globalizado. Após alguns meses de colapso dos preços dos ativos, o resultado não demorou a aparecer: o sistema financeiro estava insolvente e os consumidores, excessivamente endividados.
A reação de política econômica, num primeiro momento, sobretudo nos Estados Unidos, mas em seguida também na Europa, foi garantir que os erros de 1929 não fossem repetidos. Preocupados em garantir a liquidez do sistema financeiro a qualquer preço, os bancos centrais passaram a emitir moeda, das formas mais convencionais às mais heterodoxas. O objetivo era interromper a queda brusca dos preços dos ativos, imobiliários e mobiliários, antes que o sistema financeiro se tornasse insolvente, ou seja, que tivesse seu capital próprio tragado pela desvalorização de seus ativos.
A agressividade do Fed, a partir da quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, não foi suficiente para reverter o quadro. A velocidade da deterioração do valor dos ativos nas carteiras dos bancos continuou superior à capacidade das agências governamentais de simultaneamente capitalizá-los com recursos públicos e assumir seus créditos problemáticos. A extraordinária injeção de liquidez no sistema financeiro, desde o início de 2008 até abril de 2009, representou um aumento do ativo do Fed de quase US$ 1,2 trilhão, ou seja, aproximadamente 10% do PIB americano. A aquisição de ativos financeiros e o aumento do capital dos bancos, financiados pela expansão do ativo do Fed, é um processo de transformação de dívidas privadas em dívidas públicas, pois grande parte dos créditos adquiridos é irrecuperável. O objetivo de um comprometimento de recursos públicos dessa magnitude é fazer com que o sistema volte a emprestar - o que ainda não aconteceu e, muito provavelmente, não acontecerá enquanto o setor privado estiver sobre-endividado.
sábado, 2 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (4)
(...continuação)
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4 - Há duas grandes vertentes de interpretação das raízes da crise. A primeira dá ênfase a uma deficiência do quadro regulatório, imperfeição que teria levado aos excessos de alavancagem incorridos pelo sistema financeiro mundial, viabilizados pela explosão de engenhosidade que se seguiu à transformação de um sistema de relacionamento para um sistema de transações de mercado. Essa transformação acelerou-se a partir do desenvolvimento dos contratos contingentes, os chamados "derivativos", e da securitização de créditos. A segunda vertente enfatiza os grandes desequilíbrios macroeconômicos internacionais.
É evidente que as duas correntes estão, ao menos parcialmente, corretas, mas são, sobretudo, complementares. O desequilíbrio macroeconômico não teria sido tão profundo, nem teria se sustentado por tanto tempo, sem o desenvolvimento extraordinário do mercado financeiro. O endividamento e o grau de alavancagem mundial não teriam atingido os extremos a que chegaram sem o desequilíbrio macroeconômico internacional.
Aceitar a correção e a complementaridade das duas interpretações não significa, contudo, concluir que a redefinição do marco regulatório do sistema financeiro seja tão relevante quanto encontrar uma alternativa para o desequilíbrio macroeconômico internacional. O novo desenho da regulamentação do sistema financeiro, promovido de forma apressada e sob o impacto emocional da necessidade de injetar recursos públicos para sanear a irresponsabilidade, corre o risco de ser excessivamente repressor e voltado para impedir erros já incorridos. É mais fácil proibir e cercear do que adaptar o marco regulatório aos desafios que estão por vir. O ímpeto punitivo e cerceador é voltado para os riscos do passado e incapaz de antecipar os desafios do futuro.
De toda forma, a definição do novo marco regulatório, por importante que seja, não seria capaz de destravar o sistema financeiro, muito menos de contribuir para a retomada do crescimento global. A questão maior é como reorganizar a economia mundial para dar-lhe um dinamismo sustentado por fatores distintos daqueles sobre os quais esteve baseada nas últimas três décadas. Qual o arcabouço institucional capaz de garantir um dinamismo sustentável sem retomar e aprofundar os desequilíbrios das últimas décadas?
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4 - Há duas grandes vertentes de interpretação das raízes da crise. A primeira dá ênfase a uma deficiência do quadro regulatório, imperfeição que teria levado aos excessos de alavancagem incorridos pelo sistema financeiro mundial, viabilizados pela explosão de engenhosidade que se seguiu à transformação de um sistema de relacionamento para um sistema de transações de mercado. Essa transformação acelerou-se a partir do desenvolvimento dos contratos contingentes, os chamados "derivativos", e da securitização de créditos. A segunda vertente enfatiza os grandes desequilíbrios macroeconômicos internacionais.
É evidente que as duas correntes estão, ao menos parcialmente, corretas, mas são, sobretudo, complementares. O desequilíbrio macroeconômico não teria sido tão profundo, nem teria se sustentado por tanto tempo, sem o desenvolvimento extraordinário do mercado financeiro. O endividamento e o grau de alavancagem mundial não teriam atingido os extremos a que chegaram sem o desequilíbrio macroeconômico internacional.
Aceitar a correção e a complementaridade das duas interpretações não significa, contudo, concluir que a redefinição do marco regulatório do sistema financeiro seja tão relevante quanto encontrar uma alternativa para o desequilíbrio macroeconômico internacional. O novo desenho da regulamentação do sistema financeiro, promovido de forma apressada e sob o impacto emocional da necessidade de injetar recursos públicos para sanear a irresponsabilidade, corre o risco de ser excessivamente repressor e voltado para impedir erros já incorridos. É mais fácil proibir e cercear do que adaptar o marco regulatório aos desafios que estão por vir. O ímpeto punitivo e cerceador é voltado para os riscos do passado e incapaz de antecipar os desafios do futuro.
De toda forma, a definição do novo marco regulatório, por importante que seja, não seria capaz de destravar o sistema financeiro, muito menos de contribuir para a retomada do crescimento global. A questão maior é como reorganizar a economia mundial para dar-lhe um dinamismo sustentado por fatores distintos daqueles sobre os quais esteve baseada nas últimas três décadas. Qual o arcabouço institucional capaz de garantir um dinamismo sustentável sem retomar e aprofundar os desequilíbrios das últimas décadas?
sexta-feira, 1 de maio de 2009
ENSINAMENTOS SOBRE A CRISE. SERÁ? (3)
(...continuação)
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3 - A partir do início deste século, depois das recorrentes crises sofridas pelas economias dos países periféricos, ficou evidente que o benefício de integrar-se à economia comercial e financeira globalizada era condicional à adoção de uma postura subordinada. A integração deveria ser dirigida para expandir a base exportadora, com o objetivo de crescer dentro dos limites impostos pela manutenção de uma posição de contas externas superavitárias. Acumular um colchão de reservas internacionais era condição para uma integração sustentável. As reservas internacionais mantidas pelos países periféricos são muito superiores ao que seria razoável, se o mercado internacional de capitais tivesse qualquer semelhança com o mercado competitivo teórico.
Apenas duas alternativas estavam abertas aos países periféricos: a inserção subordinada ou manter-se à margem da economia globalizada. Na América Latina, a Venezuela de Hugo Chávez lidera a tentativa de criar um circuito alternativo, que inclui Equador, Bolívia e Argentina. Entre os que optaram por uma inserção subordinada estão o Brasil, México, Chile e Colômbia. Questões ideológicas à parte, o balanço econômico é inequívoco: integrar-se à economia globalizada, ainda que de forma subordinada, foi uma alternativa muito superior à do clube dos excluídos. O fato parece não ter escapado à liderança chinesa, desde o princípio do processo de reversão da revolução cultural maoísta. A China, alertada para os riscos de uma integração incondicional à economia globalizada pelas crises por que passaram seus vizinhos asiáticos, manteve, desde o início, uma atitude extremamente conservadora. Procurou integrar-se, mas com uma postura de conotação mercantilista-exportadora cujo objetivo primordial é extrair benefícios da demanda externa dos países centrais, para garantir expressivos superávits comerciais. Só depois de acumular um extraordinário colchão de reservas internacionais a China passou a reduzir gradualmente os entraves sobre o crescimento da demanda interna. Ainda assim, até o eclodir da crise atual, manteve o papel de locomotiva secundária, principal fonte de demanda pelos produtos primários, exportados primordialmente pelas economias periféricas, desde que suas exportações e seu superávit comercial estivessem garantidos pela euforia do consumo nos países centrais. O consumo interno chinês esteve sempre reprimido, tanto pela política econômica, quanto pelo controle direto do acesso das populações rurais às áreas urbanas.
O crescimento atrelado exclusivamente ao aumento do consumo dos países centrais não tem como sustentar-se por um período prolongado. Nesses países, o crescimento demográfico é baixo ou mesmo nulo, a pirâmide demográfica é invertida e o padrão de vida já é muito elevado. Manter o alto crescimento da demanda interna depende, simultaneamente, da capacidade de criar novas necessidades de consumo e da possibilidade de expandir os mecanismos de financiamento para famílias cada vez mais endividadas. Os países ricos centrais consomem, endividando-se para satisfazer necessidades cada vez mais artificiais, com produtos feitos na China, que controla seu custo de mão de obra e adquire matérias-primas dos países emergentes secundários. Não é necessária uma análise muito profunda para concluir que esse modelo é insustentável no longo prazo. Sinais da inviabilidade do crescimento mundial ancorado nesse modelo desequilibrado acumulavam-se há anos. Sua expressão maior era o déficit em conta corrente americano e sua contrapartida: o superávit comercial e a acumulação de reservas internacionais pela China.
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3 - A partir do início deste século, depois das recorrentes crises sofridas pelas economias dos países periféricos, ficou evidente que o benefício de integrar-se à economia comercial e financeira globalizada era condicional à adoção de uma postura subordinada. A integração deveria ser dirigida para expandir a base exportadora, com o objetivo de crescer dentro dos limites impostos pela manutenção de uma posição de contas externas superavitárias. Acumular um colchão de reservas internacionais era condição para uma integração sustentável. As reservas internacionais mantidas pelos países periféricos são muito superiores ao que seria razoável, se o mercado internacional de capitais tivesse qualquer semelhança com o mercado competitivo teórico.
Apenas duas alternativas estavam abertas aos países periféricos: a inserção subordinada ou manter-se à margem da economia globalizada. Na América Latina, a Venezuela de Hugo Chávez lidera a tentativa de criar um circuito alternativo, que inclui Equador, Bolívia e Argentina. Entre os que optaram por uma inserção subordinada estão o Brasil, México, Chile e Colômbia. Questões ideológicas à parte, o balanço econômico é inequívoco: integrar-se à economia globalizada, ainda que de forma subordinada, foi uma alternativa muito superior à do clube dos excluídos. O fato parece não ter escapado à liderança chinesa, desde o princípio do processo de reversão da revolução cultural maoísta. A China, alertada para os riscos de uma integração incondicional à economia globalizada pelas crises por que passaram seus vizinhos asiáticos, manteve, desde o início, uma atitude extremamente conservadora. Procurou integrar-se, mas com uma postura de conotação mercantilista-exportadora cujo objetivo primordial é extrair benefícios da demanda externa dos países centrais, para garantir expressivos superávits comerciais. Só depois de acumular um extraordinário colchão de reservas internacionais a China passou a reduzir gradualmente os entraves sobre o crescimento da demanda interna. Ainda assim, até o eclodir da crise atual, manteve o papel de locomotiva secundária, principal fonte de demanda pelos produtos primários, exportados primordialmente pelas economias periféricas, desde que suas exportações e seu superávit comercial estivessem garantidos pela euforia do consumo nos países centrais. O consumo interno chinês esteve sempre reprimido, tanto pela política econômica, quanto pelo controle direto do acesso das populações rurais às áreas urbanas.
O crescimento atrelado exclusivamente ao aumento do consumo dos países centrais não tem como sustentar-se por um período prolongado. Nesses países, o crescimento demográfico é baixo ou mesmo nulo, a pirâmide demográfica é invertida e o padrão de vida já é muito elevado. Manter o alto crescimento da demanda interna depende, simultaneamente, da capacidade de criar novas necessidades de consumo e da possibilidade de expandir os mecanismos de financiamento para famílias cada vez mais endividadas. Os países ricos centrais consomem, endividando-se para satisfazer necessidades cada vez mais artificiais, com produtos feitos na China, que controla seu custo de mão de obra e adquire matérias-primas dos países emergentes secundários. Não é necessária uma análise muito profunda para concluir que esse modelo é insustentável no longo prazo. Sinais da inviabilidade do crescimento mundial ancorado nesse modelo desequilibrado acumulavam-se há anos. Sua expressão maior era o déficit em conta corrente americano e sua contrapartida: o superávit comercial e a acumulação de reservas internacionais pela China.
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