segunda-feira, 30 de junho de 2008

NOSSO MADRI

Há alguns dias, acompanhando um debate iniciado no blog I Said Goddamn!, publicamos opiniões sobre alcoolismo. Esta semana o Yahoo publicou notícias originárias do site www.webmotors.com sobre o assunto. Aproveitamos e reproduzimos essas notícias, por entendermos serem de grande valia para o debate e a formação de uma massa crítica.
(2ª parte)



(Yahoo/noticias/Webmotors)


Nosso Madri

Parece que somente no macro-atacado a morte faz efeito na sociedade

Texto: Cláudio César Montoto
Fotos: Ana Lúcia Martinelli

No Brasil, a cada ano, morrem 30 mil pessoas em acidentes de trânsito. Isso significa uma média de 83 pessoas mortas por dia.

Se realmente nos importássemos com a morte no trânsito, a cada três dias deveríamos acordar espantados e gritar: tivemos um Madri! Todos nós ficamos estarrecidos, emocionados até as lágrimas, quando soubemos da barbárie cometida nos trens espanhóis. Mas, a cada três dias nós temos o "nosso Madri" no trânsito e ele passa totalmente despercebido.

Parece que somente no macro-atacado a morte faz efeito na sociedade, prévia intervenção da mídia que nos diz quando devemos chorar. As campanhas sobre a mistura letal de álcool e trânsito parece que não estão tendo muito efeito. Aliás, é muito comum, nas segundas-feiras escutar os grandes comentários, entre as pessoas jovens, de quanto beberam no último final de semana. Claro que, certo ou exagerado, cada um conta a sua façanha alcoólica com o intuito de superar o outro e merecer grandes elogios pelo fato de "ter apagado", de chegar "tribêbado" a casa etc.

Esse paradigma conversacional é o que abunda nos papos juvenis, por exemplo, dos corredores universitários da segunda-feira. Tanto homens quanto mulheres consideram estarem totalmente integrados, no grupo etário e na sociedade, graças ao uso desmedido de álcool.

Parece que o mundo pós-moderno, dentre outros paradigmas, exige como condição para pertencer a um grupo, que seus integrantes compartilhem a façanha da ingestão desmedida de álcool.

Em um artigo publicado pela revista Istoé (14 de fevereiro 2007, edição 1946) aparece uma estatística estarrecedora: “No Brasil, um estudo feito com 1.385 vítimas fatais de acidentes de trânsito no Instituto Médico Legal de São Paulo mostrou que 42,8% delas haviam ingerido álcool em excesso”.

Umas décadas atrás, qualquer um que bebesse muito deveria tentar ocultar a sua situação para não ser punido com o isolamento ou a crítica. Hoje para pertencer, para ser aceito pelo grupo não se pode rejeitar nem as drogas nem o álcool. Talvez por isso "o nosso Madri" não faça parte do repertório mental-especulativo da sociedade atual.
Ou será que devemos duvidar do Q.I. daquele que, após beber durante horas, pega o carro e vai embora rumo à sua casa com uma arma tão poderosa e, além disso, brincando de roleta russa, mas com a vida dos outros também?

Eu acho que o Q.I. não pode ser posto em dúvida, pelo menos o intelectual. Então, o que acontece com esse tipo de comportamento que é incentivado e elogiado pelos outros? Parece que se trata de uma apologia ao suicídio inconsciente (o artigo mencionado acrescenta que as “vítimas apresentaram uma média de 1,78 grama de etanol por litro de sangue, volume três vezes maior do que é permitido pelo Código de Trânsito”).

Talvez poderíamos pensar que também tudo o que é reprimido, suprimido e negado em termos conscientes, no mundo simbólico, volte no real – parafraseando uma lei da psicanálise que trata dos psicóticos - e por isso o tema da morte recalcada, apagada, silenciada, volte no pior dos planos: no mundo físico, da realidade.

Não nos damos a oportunidade de refletir sobre a finitude humana, sobre a nossa fragilidade, sobre o nosso comum destino. Então, quiçá a única alternativa que temos, socialmente, é encenar a morte.

O trânsito, álcool, as drogas e a satisfação imediata com impossibilidade de suportar frustração são elementos norteadores de uma sociedade que não está disposta a aprofundar nesse tema tão caótico e desagradável: a existência da morte. Portanto, não há como fugir e o trânsito pode ser um dos comportamentos sociais que indicam que alguma coisa de muito errada há entre nós.

Proliferam as camionetes, como se em uma grande cidade facilitasse o trânsito o fato de dirigir um veículo enorme, de preferência de cor negra e com os vidros polarizados... Um verdadeiro tanque de guerra se movimentando pelas ruas. Se no interior também vai um cachorrinho meigo, carinhoso, tipo pit-bull, então melhor ainda.

Cada um quer sair às ruas com o maior veículo possível, aliás neste mundo pós-moderno o único que as pessoas competem para ter de menor tamanho é o celular... As condições econômicas da sociedade não ajudam porque se não for assim, logo veríamos os pequenos empresários, comerciantes e até funcionários do último escalão de uma firma indo aos seus trabalhos com um caminhão Scania.

Pareceria que o ego está supervalorizado com o tipo de veículo que se dirige e com as atitudes que se têm nas ruas. Se meu carro é maior que o seu, então eu tenho prioridade de passar. O outro que se vire. Não é problema meu. Novamente pergunto se faltaria Q.I. para que um motorista não diminua a velocidade, por exemplo, quando chegar no final de uma rua?

O senso comum está sendo o menos comum dos sensos? A paranóia é o paradigma da nossa sociedade pós-moderna. O outro é um perigo tal que devemos estar sempre com a agressividade [na flor da pele], sempre disposta, pronta para dar o bote.

Nossa onipotência poderá resistir até uma batida tremenda? Somos invulneráveis pelo fato de recalcar, negar a presença da morte?

O teólogo Rubem Alves diz que aquele que não estiver disposto a escutar o que a morte tem para lhe dizer, diariamente, está condenado a ser um tolo a vida toda. Pareceria que a cada dia, após acordar, muitas pessoas oram para seu Deus lhe pedindo que as faça o mais primitivas possíveis. Como se a prece do mundo atual fosse: Deus, por favor, não me deixe pensar. Não quero refletir em nada que for humano. Meus Deus, faça de mim um protozoário unicelular!

Jean Paul Sartre nos provoca para sermos responsáveis, sempre e em todo lugar, das nossas escolhas, dos nossos desejos. O existencialismo nos ensina que só há um abismo, o da existência, então só resta tatear na escuridão, sempre procurando a essência inapreensível.

Se alguém aceitasse o desafio de aprofundar, nesta época narcisista, no ser da existência humana, certamente não agüentaria a leitura de Sartre por mais de dez minutos.

A existência nos obriga a nunca esquecer que a nossa vida sempre está em diálogo com o outro, mas não temos esse hábito de pensamento porque, simplesmente, o outro serve como justificativa para nossas impossibilidades e fracassos.

Acusamos o outro por nossas derrotas e nos queixamos: olha o que o outro me fez. Na verdade, deveríamos começar a nos perguntarmos: por que deixei que o outro fizesse isso comigo? Jogar a responsabilidade nos outros é uma efetiva tentativa de se eximir como sujeito.

Por isso é tão comum ver que o outro não é tido em conta. Se "estamos" pedestres, então os carros devem nos respeitar. Se estamos de carro, o outro que espere e me deixe passar. Talvez, temos o mundo que merecemos. Entretanto, faça a sua escolha e não jogue no outro a responsabilidade que é somente sua. Tchan, tchan.

Cláudio César Montoto (cmontoto@ig.com.br) é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC-SP), psicanalista e escritor.

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