terça-feira, 17 de junho de 2008

PROJETO CALHA NORTE - IV

Este é um artigo escrito em junho de 1989. É esclaredor e preocupante, pois muito do conteúdo se tornou real ou está se tornando.

Em:
http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=482


Sociedade: Calha Norte - Além das fronteiras
em 30/06/1989

São 6 mil e 500 km de extensão, nos limites brasileiros com a Guiana Francesa, o Suriname, a Guiana, a Venezuela e a Colômbia, a serem ocupados militarmente, a pretexto de "fortalecer a presença nacional" na região. Na verdade, o plano elaborado na ditadura militar e que Sarney está implementando é a materialização das teorias geopolíticas do General Golbery do Couto e Silva. As segundas intenções são estender o poderio militar do Brasil para além do território nacional.

por Luzia Rodrigues e Paulo R. Schilling*

Incapaz de formular um projeto nacional de transição da ditadura militar para um governo democrático e civil, o presidente José Sarney, logo após assumir a Presidência da República, aprovou um projeto do então Conselho de Segurança Nacional denominado "Calha Norte". Elaborado sigilosamente nos gabinetes militares, o projeto tem como principal objetivo ocupar, "sob o enfoque do desenvolvimento e segurança", a região norte das calhas dos rios Solimões e Amazonas.
Abandonado à própria sorte devido à crise econômica dos anos 80, o desgastado binômio "segurança e desenvolvimento" - razão de ser de muitos projetos dos governos militares e princípio que fundamenta a geopolítica brasileira - foi resgatado, respaldado e avalizado pelo civil Sarney. O projeto estabelece um plano de ocupação de uma faixa de 160 km de largura nos limites do Brasil com a Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela e Colômbia. Ao todo são 6,5 mil km de fronteiras, representando 1,2 milhão de Km2, 1/4 da Amazônia legal, quase 15% da área total do país. Nessa faixa vivem 1,6 milhão de pessoas.
"A filosofia do projeto é fortalecer a presença brasileira na área de fronteira, para organizar as sociedades que ali se instalarem." O argumento é do general Rubens Bayama Denys, chefe da Casa Militar de Sarney e coordenador do projeto que começou a ser implantado em meados de 1986. Não se sabe até agora quanto foi gasto, mas em 86 havia uma previsao orçamentária de 10.787.165 OTNs até 1990, incluindo também a construção de quartéis.
Entre as ações justificadas pela comissão interministerial encarregada da implantação (formada pelos ministérios militares, pela Seplan, Interior e Itamaraty) estão: a aplicação de toda legislação referente ao comércio com o Paraguai; a criação de consulados na fronteira; a ampliação da atuação da Funai, visando impedir a criação do "Estado Independente dos Ianomami"; e a intensificação das presenças da Marinha, Exército e Aeronáutica na região, através da construção de pelotões, aeródromos e postos fluviais.
Segundo o general Bayama Denys, "esse planejamento, além de objetivar o fortalecimento das expressões de poder nacional, não deveria deixar de incluir o relacionamento com os vizinhos do Norte". E acrescenta: "Seria recomendável, pelas razões citadas, ampliar as relações bilaterais, especialmente com a Guiana e o Suriname. É preciso lembrar que a aproximação com esses países apenas atingirá níveis satisfatórios na medida em que o peso específico do benefício político dela resultante prevaleça sobre as possíveis dificuldades comerciais e financeiras, entre outras. Além disso, pode-se esperar que a integração desse espaço geoeconômico ao resto do país venha reforçar o relacionamento com os vizinhos, podendo surgir o Brasil como opção mais confiável do que quaisquer outros alinhamentos". Em outras palavras: esses países passariam a ser como o Paraguai - satélites do Brasil.
Tudo isso de forma sigilosa, à revelia do povo e do Congresso, como se ainda estivéssemos em plena ditadura. O próprio texto reconhece e tenta justificar: "Sob o aspecto da confidencialidade, cabe explicar que a prioridade governamental, sendo acordada à Calha Norte, poderia vir a suscitar tanto expectativas domésticas exageradas quanto temores infundados nos países limítrofes. Muitos dos temas abordados, tais como reformulação de políticas indigenistas, retomada da demarcação de fronteiras ou localização de instalações militares, requerem tratamento sigiloso, pelo menos nos estágios iniciais da análise, em virtude da alta sensibilidade política". Nos anos 70 os planos expansionistas dos geopolíticos brasileiros eram ostensivamente propagandeados. Vivíamos a etapa do "Brasil potência". Agora, os projetos se desenvolvem de forma clandestina.

Um segredo mal guardado

O segredo ficou guardado pouco mais de um ano, até que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e alguns jornais tiveram acesso ao documento, tornando-o público. Em dezembro de 86, a Igreja divulga seu documento: "A Igreja frente ao Projeto Calha Norte". E afirmava: "O projeto acelerará o processo de destruição da cultura indígena, além de ser um desperdício de recursos financeiros, materiais e humanos que poderiam ser destinados a obras de infra-estrutura e apoio à população da Amazônia". Além disso, denunciava que o Calha Norte atingirá 50 mil índios de 33 nações, distribuídas em 51 aldeamentos de fronteiras e outras 16 nas calhas dos rios, especialmente no Alto Rio Negro.
Única instituição no país a levantar a voz contra o Calha Norte, a Igreja denunciava também o caráter de nítida ocupação militar da região amazônica. D. Erwin Krautler, presidente do Cimi e bispo do Xingu, rebate com altivez as acusações fantásticas de que a Igreja estaria apoiando a criação do "Estado Independente dos Ianomami": "São levianas (as acusações) e camuflam interesses econômicos espúrios de grupos nacionais e transnacionais que pretendem usurpar as terras dos índios, em um autêntico crime de lesa-pátria".
Mesmo assim, o Calha Norte vem sendo implantado, obviamente não no ritmo programado pelos militares e por Sarney. Freado parcialmente pela crise, seu objetivo vai se consolidando, fechando, assim, o círculo de um longo planejamento estratégico que busca tornar realidade a "vocação continental" do Brasil.
Até agora foram construídos oito pelotões de fronteira, estando previstos mais dois para este ano. Estradas e aeródromos estão sendo asfaltados, sendo que estes permitirão o pouso de aviões militares Bufalo C–115. Embora não esteja nos planos do governo a recuperação por inteiro de nenhuma das grandes estradas construídas durante o "milagre econômico", o Calha Norte prevê a conservação e a abertura de um trecho da Perimetral Norte, que, correndo ao longo das fronteiras dos países da região, tinha um claro objetivo militar e acabou sendo abandonada por causa da crise econômica.
Há mais pontos polêmicos relacionados a outros projetos do governo e que têm a ver com o desenvolvimento do Calha Norte. Um deles é a construção de seis hidrelétricas na bacia do rio Xingu. Elas formariam seis grandes lagos sobre a floresta amazônica, com uma superfície total de 18 mil km2. Uma área do tamanho do Estado de Sergipe. Juntas, as seis usinas produziriam 17,6 milhões de quilowatts. Essa energia representa uma vez e meia a produção da maior hidrelétrica brasileira, a de Itaipu, que produz 12,6 milhões de quilowatts, dos quais a metade é destinada ao Paraguai.
Para construir todas essas usinas, o Brasil se endividará em mais US$ 10,6 bilhões. É um orçamento inicial que corresponde a pouco menos de 10% do total da dívida externa. O orçamento de Itaipu era de US$ 3 bilhões; hoje, seu custo final já está calculado em US$ 25 bilhões. O custo estimado das usinas do Xingu não inclui as linhas de transmissão para levar essa energia aos centros consumidores. Os seis lagos vão inundar parte das reservas dos seis povos indígenas do rio Xingu: Arara, Asurini, Juruna, Kararaô, Parakanã, Xicrin e Xipaia-Curuaia. Pelas leis brasileiras, essas reservas são intocáveis. Não podem ser invadidas nem por posseiros, nem por garimpeiros e nem por águas de lagos artificiais, a menos que o governo obtenha autorização expressa do Congresso Nacional.
Não se pode saber se isso ocorrerá ou não. Mas basta lembrar que há muito tempo o Brasil vem se endividando para favorecer monopólios estrangeiros. Por exemplo: cerca de 50% da energia elétrica gerada por Tucuruí é vendida aos monopólios japoneses do alumínio, à Shell e à Alcoa. Segundo o ex-ministro das Minas e Energia, Aureliano Chaves, essa energia é gerada a um custo de US$ 38 o megawatt e vendida às transnacionais do alumínio por US$ 10,5 e US$ 16. "Praticamente fornecemos energia de graça", reconhece Paulo Richer, secretário do Ministério das Minas e Energia, que afirma que o subsídio dado aos três monopólios estrangeiros alcança US$ 1 bilhão ao ano, três vezes mais do que o governo federal gasta com a merenda escolar.
Consta dos objetivos estratégicos do Calha Norte a construção de um porto no Pacífico, um secular sonho heróico dos geopolíticos brasileiros. Uma rodovia partindo de Rio Branco, atravessando os Andes peruanos, deveria chegar ao grande oceano.
Por outro lado, os dois últimos pontos de aparente resistência à "opção continental" do Brasil foram neutralizados em março passado, quando Sarney realizou a primeira visita de um chefe de governo brasileiro ao Suriname e à Guiana. "Espero fechar o círculo da política de integração do Brasil com seus vizinhos da América do Sul", não escondeu Sarney do seu colega surinamês Ramsewack Shankar. Como não podia deixar de ser, o general Bayama Denys acompanhou o presidente, numa viagem que vinha sendo programada desde o começo dos anos 80.


*Luzia Rodrigues é jornalista e membro do Conselho Consultivo da ABI-SP. Paulo R. Schilling é jornalista, responsável pelo projeto da dívida externa do Cedi, membro do Conselho Editorial da Revista Tempo e Presença, integrante do Desep-CUT.

(continua...)

Nenhum comentário: